Entrevista realizada por: Darluzi Ehle, Manuela Macena e Roma de Castro (Letras - UFPB)
1. Existe, dentro da linguística, um número de subáreas para se escolher, assim como linhas de pesquisas. Quais motivos lhe levaram a escolher a Sociolinguística? Pode contar um pouco da sua trajetória acadêmica até chegar aqui?
Na verdade, atuo mais em Sociolinguística (em termos teórico-metodológicos), mas, exatamente por esta área ser afeita a interdisciplinaridades e meu perfil ser bastante plural (como o é a Sócio), tenho interesses em diversas subáreas da Linguística.
Estou cada vez mais convencida de que o mais apaixonante em nosso objeto de estudo é sua complexidade: a língua é múltipla e composta de muitas facetas; assim, qualquer abordagem que dela se faça deixa de lado algo que a configura de forma essencial. Hoje, seja por meu olhar científico-descritivo, seja por meu olhar científico-aplicado, com interesses também voltados ao ensino de Português, estou convencida de que nenhuma definição particular de língua dá conta dos desafios da área. Tenho perseguido olhar os temas gramaticais que estudo (e que o professor tem de ensinar) em três faces: sistematicidade (a língua é absolutamente sistemática e arquitetada naturalmente), interatividade (a língua se presta e, por vezes, se modela no circuito comunicativo) e heterogeneidade (a língua é inerente e sistematicamente variável). Minha dedicação maior à Sociolinguística talvez esteja relacionada ao fato de essa área me permitir olhar para essas diversas faces da Língua a um só tempo.
De toda forma, não me tornei sociolinguista por uma escolha consciente. Em alguma medida, fui escolhida por ela. Ainda no primeiro ano de graduação (quando também dava aulas de alfabetização infantil em instituição privada), fui convidada pela Profa. Cilene da Cunha a atuar em um projeto de Geolinguística, especialmente na área de Lexicologia, com a finalidade de construir um atlas baseado na fala de pescadores sem escolaridade. O encantamento pela pesquisa de campo, o levantamento de dados da fala de analfabetos, a observação da exuberância da língua, do jeito que ela é, me transportaram muito facilmente à concepção de que todo espaço (inclusive o geográfico) é social, e de que toda manifestação linguística sofre restrições não só internas, mas também externas ao campo estrutural. Já sob orientação da Profa. Silvia Brandão (no Mestrado), passei a trabalhar sistematicamente com fenômenos morfossintáticos – primeiramente, a concordância; depois, no Doutorado, a ordem dos clíticos pronominais –, buscando observar as motivações definidoras do comportamento de regras variáveis. A partir daí, sempre tentei aliar contribuições de outras subáreas da Linguística: no Mestrado, desenvolvi um capítulo aplicado à área do Ensino (já antecipando minha paixão pela relação Linguística-Educação); no Doutorado – aprofundando o trabalho com variedades do Português, brasileiras, europeias e africanas –, aliei o aporte da Sociolinguística ao de Teoria Linguística descritiva (para dar conta do tema morfossintático em questão), além da interface com a Fonética Acústica. Após tais experiências, passei a desenvolver projetos diversos, seja no campo da pesquisa básica (com foco na abordagem contrastiva de temas morfossintáticos em variedades do Português, nacionais e internacionais), seja no campo da pesquisa aplicada ao ensino, mais recentemente ampliado por meu compromisso com o Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS).
2. O que cabe a Sociolinguística Variacionista apurar em suas pesquisas? Poderia dar uma explicação breve sobre a Sociolinguística que seja compreensiva para pessoas que não são do ambiente acadêmico linguístico?
De forma bem simplificada, posso dizer que a Sociolinguística Variacionista se ocupa do tratamento de fenômenos linguísticos em variação e, se for o caso, em processo de mudança.
Um exemplo pode ser esclarecedor: no Português do Brasil, temos mais de uma forma alternante de expressar o futuro; podemos dizer “vou viajar” ou “viajarei”. Diante dessa variação, um sociolinguista pode fazer várias perguntas:
Uma dessas formas é mais usada do que a outra? (distribuição dos dados; constatação da variabilidade efetiva da regra)
Em que contextos linguísticos e extralinguísticos usamos uma ou outra dessas formas? (problema das restrições/ condicionamentos em geral);
Qual é o perfil da pessoa - quanto a região onde mora, faixa etária, escolaridade, hábitos sociais etc. - que usa mais cada uma dessas variantes? (problema dos condicionamentos sociais e do possível encaixamento social)
Essa variação sempre aconteceu na Língua Portuguesa? Uma seria mais antiga do que a outra? Ela veio de uma motivação interna ou externa à língua? Algum fato histórico (como, por exemplo, o contato entre povos de línguas diferentes) justifica o aparecimento de uma das formas? Uma dessas formas estaria substituindo a outra, configurando um caso de mudança linguística? (problemas da implementação, transição e trajetória da mudança)
Essa variação acontece na fala e na escrita? Os falantes apreciam as duas formas com a mesma aceitação? Ou alguma dessas formas é tida como feia/errada/desprestigiosa/ inadequada? (problema da avaliação)
Ao buscar responder a essas e outras questões, a Sociolinguística controla variáveis / influências de natureza diversa, o que permite pensar em áreas de interfaces: sociolinguística e funcionalismo; sociolinguística e cognitivismo; sociolinguística e formalismo; sociolinguística e educação, dentre outras.
3. A Sociolinguística é uma área relativamente nova em comparação a outras áreas, por conta da própria Linguística ser recente. Você acredita que ela deveria ser mais abordada em ambiente acadêmicos e no dia-a-dia? Quais dificuldades são encontradas na incorporação da Sociolinguística no ensino?
Com certeza, sendo a Linguística, e mais ainda, a Sociolinguística recentes, em termos científicos, sua abordagem para além dos muros acadêmicos há de ser ampliada, discutida e planejada, sem dúvida. Temos um saber milenar de inspiração greco-latina, na tradição gramatical, que formatou um jeito de olhar e avaliar a língua. Trata-se de uma influência fundamental (da qual somos todos herdeiros), com qualidade descritiva que privilegia a escrita literária e dentro dos limites de seu tempo, saber que foi adotado no campo pedagógico e precisa ser discutido e ampliado, em função das necessidades contemporâneas. Para tanto, há que se dispor de metodologias ainda em desenvolvimento. Isso é uma questão de tempo.
Na área da Sociolinguística, há um longo caminho a percorrer, mas muitos pesquisadores têm oferecido contribuições e vejo com otimismo os avanços da chamada Sociolinguística Educacional. Talvez a maior dificuldade seja, ainda, a concepção de norma-padrão, que, como propõe Carlos Alberto Faraco, corresponde, muitas vezes, a uma “norma curta”. (Adiante, volto a esse assunto.)
4. Qual a importância do tratamento estatístico para analisar variações e variáveis e como as variáveis não linguísticas influenciam ao analisar dados linguísticos?
O tratamento estatístico é fundamental no estudo sociolinguístico. Isto porque os fatores linguísticos/estruturais e extralinguísticos/sociais são coautores nesse processo de restrições ao usos, atuando, portanto, a um só tempo, no condicionamento da variação. Determinar o peso de cada fator é um desafio que não se cumpre a “olho nu”. Nesse sentido, somente uma ferramenta matemática poderá, mais do que fazer o papel de uma máquina calculadora e oferecer valores absolutos e percentuais, detectar o peso de atuação de cada contexto/fator no conjunto de todos os possíveis fatores. Em termos simplificados, a abordagem estatística poderá delinear as probabilidades de atuação de um fator, em meio ao conjunto de fatores em investigação, no favorecimento ou desfavorecimento de uma das formas alternantes.
5. Apesar da Linguística ter “nascido” há mais de cem anos, foi apenas nos anos sessenta que Labov viria a criar uma metodologia e uma teoria da variação, focando no fator social da língua. A metodologia proposta por ele evoluiu ou se alterou de alguma maneira? Se sim, por quê?
A metodologia proposta por Labov é ampla e bastante completa. Seja no campo dos condicionamentos, seja no campo da avaliação, Labov previu a abordagem, a um só tempo quantitativa e obviamente qualitativa dos dados obtidos a partir de diferentes recursos. Propôs critérios não só quanto à constituição de bancos de dados, às condições de estratificação de amostras, e à formulação cuidadosa de modelos matemáticos, mas também quanto ao uso de outros instrumentos, como a elaboração de questionários, testes diretos e indiretos, observação de fontes distintas etc.
Como há de acontecer em todo campo científico, os instrumentos metodológicos foram se aprimorando. O próprio pacote de programas computacionais para análise de regras variáveis se alterou, em suas versões (de DOS até WINDOWS – Goldvarb-X). Além disso, a utilização de outros recursos (como o R-Brul e a Plataforma-R) para a análise de dados também tem sido evidente.
Posso observar, ainda, que os interesses dos sociolinguistas brasileiros também vão se ampliando em várias frentes de trabalho. Por exemplo: do maior foco à descrição dos usos para a compreensão do funcionamento da variação na gramática, como componente abstrato e teórico; do maior foco ao tratamento dos usos linguísticos para o investimento no estudo da avaliação/percepção dos usos; do maior foco à análise de amostras de fala vernacular (entrevistas sociolinguísticas) ao tratamento de outros materiais, de fala e/ou de escrita, com diferentes manifestações de registro/estilo.
Reafirmo, entretanto, que, por mais que vertentes se interessem por diversas subáreas da variação e mudança linguísticas (o que foi identificado por Penelope Eckert como “ondas” da Sociolinguística), as bases já estavam lançadas na agenda laboviana inicial.
6. Como são coletados os dados e feita a análise na perspectiva da fonética e fonologia e como são selecionados os falantes? Como é o contato com eles?
Não só para o estudo de fatos fonético-fonológicos, mas também para os de outros níveis gramaticais, o método mais empregado é, ainda, o da entrevista sociolinguística. Determinam-se os perfis dos informantes relacionados às hipóteses da pesquisa e faz-se a seleção aleatória dos indivíduos. Para que o falante não monitore seu modo de falar, temendo avaliação negativa do ouvinte, é comum que o pesquisador aborde o indivíduo informando seu interesse pela comunidade em termos sociais e culturais, de modo geral, e não especificamente pela forma de usar a língua. De toda forma, convém, em termos éticos, a aprovação da entrevista pelo indivíduo bem como o uso de sua fala para fins científicos, sendo resguardada a identidade do indivíduo. O sociolinguista faz de tudo para evitar os efeitos do chamado “paradoxo do observador”: precisa observar o indivíduo em situação natural, mas o faz numa situação de observação não natural. Os temas abordados, as indicações dos participantes por pessoas da comunidade, dentre outros elementos, são pensados para que a conversa seja a mais natural possível.
Quanto à descrição de fenômenos fonético-fonológicos, os sociolinguistas seguem os procedimentos tradicionais da área: da coleta, codificação até o tratamento estatístico das ocorrências e interpretação dos resultados.
7. “No estudo de algumas variações fonológicas, as diferenças constatadas na linguagem de homens e mulheres foram muitas vezes atribuídas a diferenças no aparelho vocal. Você concorda que diferenças linguísticas entre os sexos possam ser devidas às diferenças biológicas?”(Retirado de Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação, 2017, p. 42)
Embora eu não seja especialista em Fonética-Fonologia, posso afirmar que as configurações fisiológicas de homens e mulheres podem influenciar na pronúncia dos sons quanto a traços objetivos relacionados, por exemplo, ao timbre e à tonalidade em termos fônicos. Não há, entretanto, evidências de que a variação e mudança que afetam o campo fonológico em uma língua histórica sejam determinadas por diferenças biológicas. De outro lado, os perfis socioculturais atribuídos ao que é ser “masculino” ou “feminino” podem constituir efetivamente fatores favorecedores e desfavorecedores da variação e da mudança linguísticas, no sentido de impulsionar ou refrear mudanças linguísticas, pelo comportamento mais ou menos inovador de homens e mulheres, em termos socioculturais.
8. Cabe ao sociolinguista detectar se há uma mudança linguística em progresso? Se sim, quais os artifícios necessários para que tal observação seja feita? E como detectar se tal mudança tem tendências a continuar ou não, se possível?
Como já afirmei, integra as tarefas do sociolinguista detectar se o fenômeno em variação constitui um caso de variação estável ou mudança linguística. Para tanto, o especialista pode realizar estudos de dados em tempo real (com ocorrências coletadas em dois recortes temporais distintos, com pelos menos 18 anos de diferença; há metodologia específica para isso) ou em tempo aparente (com ocorrências coletadas da fala de indivíduos de diferentes faixas etárias, que representariam fases históricas distintas de aquisição da língua). É a interpretação dos resultados a partir da análise do maior número de amostras e formas de recolha que permitirá detectar a trajetória da mudança.
9. Quais são os softwares mais usados dentro das pesquisas sociolinguísticas?
Goldvarb-X ainda me parece ser o mais utilizado no Brasil. Há também estudos com o R-brul e cresce o interesse (cf. cursos de formação) pela Plataforma-R. A sociolinguista Lívia Oushiro, da UNICAMP, por exemplo, tem feito muitos empreendimentos no sentido de ampliar o uso da Plataforma-R no Brasil.
10. Em nossas pesquisas, apuramos que o preconceito linguístico é um assunto muito discutido, pois ainda somos regidos de práticas pedagógicas dualistas, onde existe o certo e o errado na língua, denominando um padrão culto. Como devemos abordar a questão do preconceito linguístico dentro das escolas e devemos combater a noção do “certo” e do “errado” na língua?
Esse tema não permite uma resposta rápida que caiba nos limites de uma entrevista, eu creio. O preconceito lingüístico é assunto complexo e ultrapassa o campo das premissas da Ciência (Socio)Linguística. O efeito nocivo de um ser humano julgar / aceitar ou desprezar / discriminar outro ser humano pelas características de sua fala (ou do que quer que seja), escolhidas por ele ou naturalmente herdadas na aquisição da língua em sua comunidade, é, para mim, um mal e ao mal não se deve dar trégua. Esse combate, entretanto, ultrapassa o papel do pesquisador e mesmo do professor, porque é da esfera do humano, não do campo técnico. Como todo preconceito, suas raízes são profundas e complexas. Não cabem explicações simplistas, nem medidas ingênuas.
Primeiramente, toda forma de ignorância precisa ser combatida com informação. Um dos papéis que podem ser exercidos por cientistas ou por indivíduos que divulguem o que fazem os cientistas, em sua desejável interação com a escola/sociedade, é traduzir e disseminar o conhecimento científico. Por isso, é preciso sistematizar as descobertas sobre as regras variáveis e divulgá-las em linguagem acessível para professores, pedagogos e alunos de todo o país. Assim, será possível observar que estruturas tidas como erradas, feias, indesejáveis em algumas propostas escolares podem ser observadas inclusive nas chamadas variedades cultas, faladas e escritas, aquelas registradas por indivíduos de alta escolaridade e com acesso a práticas diversas de letramento.
Em segundo lugar, creio ser necessário investir em divulgação desse debate e desses resultados para além dos meios escolares, em projetos de extensão, por exemplo. Iniciativas interessantes têm surgido em redes sociais (ver perfil do Facebook da “Sophia sociolinguista”, aplicativo como “LING. Isto não é uma gramática”, “Mistérios sociolinguísticos”, ferramentas disponíveis gratuitamente, produzidas pelo Professor Ricardo Joseh Lima, da UERJ, e equipe de orientandos).
De todo modo, penso que devemos ter muito cuidado no que vamos propor. O conceito de norma-padrão é socialmente aceito, disseminado e adotado em nossas práticas cotidianas por todos nós. Trata-se de um conceito sociolinguístico, muito caro aos pesquisadores! Embora uma “sociolinguística de botequim” (desculpem-me o palavreado!) possa ter sido concebida como uma “terra do vale-tudo” em língua (algo do tipo: “não existe certo e errado; então, vamos usar qualquer coisa em qualquer lugar e seremos felizes!”), nem de longe isso comunga com um dos interesses primordiais da área: o estudo da avaliação linguística. Não só o que os falantes usam, mas o que os falantes pensam sobre o que usam pode mover os processos de variação e mudança linguística. Em outras palavras: a “norma-padrão” existe, independentemente do desejo do cientista sociolinguista (e não estou falando de norma gramatical, dos manuais fundamentados na escrita literária! Recomendo a leitura da extensa obra de Carlos Alberto Faraco, para maiores esclarecimentos.). Trata-se de um fato social ou sociolinguístico.
Por tudo isso, não acho que nosso foco principal deva ser combater a noção de certo e errado, mas conscientizar quanto aos critérios do que se elege como desejável/prestigioso/adequado/”certo” ou não em cada situação comunicativa. É preciso esclarecer que as escolhas sociais das variantes linguísticas como certas ou erradas não são cientificamente fundamentadas, mas são motivadas por critérios subjetivos de elegância / aceitação sociocultural. Por isso mesmo, essas escolhas (que todos nós fazemos, inclusive os sociolinguistas, quando falamos e/ou escrevemos) devem estar diretamente vinculadas a contextos de aplicação. Nesse sentido, a escola também fará suas escolhas e dará orientações (“normativas”, por assim dizer. Não conheço aula de redação sem marcar textos, não é?). Estas serão tanto mais eficientes quanto mais variáveis e sensíveis aos interesses dos usuários em cada contrato sócio-comunicativo. É o que penso.
Não tem efeito na sociedade em geral o discurso “não existe certo e errado”, “abaixo a norma-padrão”! Não é uma questão que se ganha no grito, sabe? (Embora gritar também possa ser um exercício catártico!). É preciso usar os dados das regras variáveis, sobretudo as morfossintáticas, conhecer o comportamento da língua em uso, mostrar isso para todo mundo, enaltecer os efeitos estilísticos dos usos populares (tão lindos quanto quaisquer outros) e dos considerados cultos etc etc etc.... Também não podemos ficar só falando de “framengo ou flamengo”, “mexerica ou tangerina” ou “nós vai e nós vamos”. Temos falar de fenômenos morfossintáticos ( “o livro que eu preciso” ou “o livro de que eu preciso”; “encontrei ele, encontrei o rapaz, encontrei-o ou encontrei Ø”, “ter ou haver existenciais”, dentre tantos outros fenômenos.). A exuberância da variação é encantadora. Como alguém não poderá se apaixonar, se apresentada sem preconceitos? Do “nós vai” ao “estudá-lo-ia”, do hoje ao passado, do analfabeto ao indivíduo ultra-letrado, de Norte a Sul deste país! Tem espaço para todo mundo.
Em outras palavras, a norma-padrão é um conceito sociolinguístico, mas ela pode e deve acomodar variação, pluralidade; caso contrário, ela é opressão e insensatez.
11. A sociolinguística, assim como o funcionalismo e teorias que focam mais no uso social da língua, nasceram como uma ruptura à linguística estruturalista, já que esta não conseguia cobrir os aspectos aqui mencionados. Você acredita que, dentro do modelo sociolinguístico atual, existem pontos a serem melhorados ou ele deixa lacunas importantes, assim como o estruturalismo, que a sociolinguística não consegue cobrir? Se sim, quais são elas, na sua opinião?
Todo quadro teórico tem seus limites e suas lacunas. Nenhum vai dar conta de tudo, nem deve pretender. Não é uma questão de melhorar; é uma questão de delimitar objeto científico.
Vejo, entretanto, que não só a Sociolinguística como também outros quadros teóricos precisam trabalhar mais em conjunto com outras áreas da Linguística. E esse movimento está acontecendo... O que a Sócio tem a dizer de processamento das variantes? Vamos pedir ajuda à Psicolinguística. O que a Sócio tem a dizer de teoria gramatical sobre a aquisição das variantes? Cada parâmetro é adquirido de uma vez? Existe aquisição tardia de formas alternantes, configurando uma “gramática do letrado” (como propõe Mary Kato)? Vamos pedir ajuda aos formalistas, aos aquisicionistas... etc etc. Só dei alguns exemplos; há muitas interfaces a pensar.
Quanto à metodologia variacionista, ainda temos de avançar em adequação explicativa (embora haja avanços flagrantes nesse aspecto). Não podemos nos limitar a apresentar um monte de números e não ter discussão efetiva de resultados, seja no campo interno à língua, seja no campo externo à língua.
Penso que temos de avançar, também, em alguns aspectos específicos da área, que se referem à análise da complexidade do que está por trás das categorias sociolinguísticas clássicas, como culto x popular; urbano x rural, por exemplo. Nesse sentido, uma categoria em especial me parece muito mal resolvida: o tratamento da variação estilística. Para além das amostras de entrevistas sociolingüísticas, precisamos avançar em gravações de conversas das mais espontâneas às mais controladas, na fala, e em coletas de textos dos mais supostamente formais aos mais elaborados quanto ao controle do estilo. Entendo que um controle da variação estilística permitirá avanços, inclusive, no debate da norma-padrão.
12. No seu “Projeto 21 ALFAL” de 2015, existe a preocupação em determinar tendências de mudança linguística a partir de análise de cada variedade da Língua Portuguesa e da comparação entre elas. Como o resultado desse tipo de pesquisa pode orientar a prática do professor na sala de aula?
Bom, nem todos os meus projetos têm objetivos pedagógicos. O chamado Projeto 21 ALFAL é um grupo de trabalho da Associação, que permite a interlocução com pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre um tema comum; inicialmente, era apenas a concordância, e, hoje, tratamos de qualquer tema lingüístico em comparação nas variedades do Português.
Esse Projeto não teve como ponto de partida a orientação a professores de Português. Por princípio, entretanto, acredito que toda pesquisa, inclusive a pesquisa chamada “básica”, é fundamental ao contexto pedagógico. Primeiramente, porque promove o conhecimento, base da formação de um bom profissional. Em segundo lugar, por se tratar de um projeto que objetiva descrever o que é comum a todas as variedades do português e o que é particular traz generalizações importantes para a elaboração de material para o ensino em cada país. Nas variedades africanas, por exemplo, em que se fala português produtivamente como L2, é de fundamental relevância produzir gramáticas que busquem a identidade nacional.
No Brasil, em que já se conhecem muitos de seus parâmetros definidores, o Projeto permite sistematizar o que é linguisticamente brasileiro, vernacular, de modo a trabalhar, em sala de aula, com o complexo de formas que compõem essa chamada Língua Portuguesa. Entendo que é possível partir do que é naturalmente brasileiro para, assim, permitir a um aluno comparar com o que não é, mas que é usado em diversos gêneros textuais, sobretudo na escrita. Assim, fica mais viável buscar, nas escolas, a desejável ampliação de repertório lingüístico (seja de formas mais brasileiras ou até de formas mais originalmente européias, por herança histórica e cultural) para ler qualquer texto, desta época ou de épocas passadas, dos textos mais referenciais aos mais literários.
Costumo dizer que o ideal é adotar a “cultura do mais”, “nunca do menos”. Precisamos chegar a um grau de maturidade pedagógica que permita a todo brasileiro se encantar com qualquer estrutura, seja um “estudá-lo-ia”, seja um “nós vai”. Para que isso? Para conhecer e abordar reflexivamente a língua (simples assim). Para ler qualquer texto. Para usar qualquer estrutura, se desejar! Viva a autonomia do nosso aluno e uma pedagogia que promova essa autonomia.
13. No seu livro, Ensino de gramática: uso e descrição, você aborda que muitas das práticas educativas envolvidas com a língua e com a linguagem estão atreladas a um ensino engessado que se baseia em práticas literárias antigas e, muitas vezes, portuguesas, entrando em uma discordância direta sócio e geograficamente. Afinal, estamos no Brasil e não em Portugal. Ao que você atribui essa cultura da valorização das convenções portuguesas em detrimento das brasileiras? Não deveríamos ensinar o português falado e escrito aqui no Brasil?
Não temos, hoje, um culto ao que é de Portugal. Não vejo assim. Temos uma norma gramatical que, historicamente, herdou um modelo português. Esse é um debate muito extenso também. Recomendo a leitura do artigo “Norma e condescendência...”, de Emílio Pagoto, porque, nos limites desta entrevista, serei reducionista discutir esse tema.
O que penso hoje é que é fundamental entender o que fazemos, em nossas práticas de orientações normativas (escolares, na revisão de textos etc.), com o que está na chamada “norma gramatical” (conforme propõe Faraco, aquela apresentada em respeitáveis gramáticas e dicionários tradicionais). Supomos ser possível adotar suas recomendações no contexto escolar contemporâneo? E, se o fazemos, imaginamos que elas terão aplicabilidade na fala e na escrita? E, ainda que pensemos apenas na modalidade escrita, cremos que ela tenha aplicabilidade nos diversos gêneros textuais?
Vejamos: não se pode avaliar nem divulgar o que está codificado na “norma gramatical”, como se ela servisse como “norma-padrão” hoje e para as diversas finalidades, sob pena de sermos anacrônicos e pouco fundamentados. A “norma gramatical” tem um imenso valor cultural e estilístico; conhecê-la é bastante importante não só para entender o comportamento de dados, mas também para, de forma instrumental, auxiliar a compreensão de textos diversos, sobretudo o literário. Entretanto, divulgar essa norma como instrumental para a produção de textos hoje nos diversos gêneros é absolutamente improdutivo. Usar suas recomendações para aprovar e reprovar alunos, em flagrante atitude de coação e poder, humilhando os usos brasileiros, tomados como inferiores e indesejáveis, pode ser uma atitude, não apenas infundada, mas desumana.
O que fazer, então? “Ensinar o português falado e escrito no Brasil”? Sim, mas não só! Repito: adotemos a “cultura do mais”, nunca “do menos”. Preciso valorizar as variedades cultas e populares brasileiras, sim, mas acho muito interessante se pensarmos num continuum oralidade-letramento (como Bortoni-Ricardo nos ensina) ou fala-escrita (como Marcuschi nos ensina) na sala de aula. Nesse continuum, cabem os usos mais genuína e naturalmente adquiridos no Brasil até os usos estrangeiros. Não acho isso uma utopia.
Tenho tentado mapear esses usos em uma diversidade de gêneros textuais (estou tentando organizar um livro com esses resultados este ano), para cumprir um desafio proposto por Carlos Faraco, o de que façamos manuais para o ensino em que a norma-padrão reflita a norma de uso das variedades cultas. Ao fazer esse exercício de tentar mapear os usos cultos, que fundamentarão as orientações normativas, é inegável propor que o padrão deve ser variável como o é o uso! Não é uma conseqüência lógica? Acho isso ótimo, desafiador e apaixonante. Eu padronizo diferentemente a depender do gênero textual e de todas as condições sociointeracionais que ele envolve (interlocutor, suporte, finalidade etc etc.). Norma-padrão não é incompatível com pluralidade...
14. Que palavras você poderia deixar para os alunos e professores iniciantes interessados em fazer pesquisa em Sociolinguística?
Estudem muito... produzam com todas as forças... divulguem ao máximo o que fazem! Mas busquem fazer isso a vida toda com a humildade de um eterno aprendiz.
Assim, creio que minhas palavras a iniciantes devam ser mais do campo afetivo/psicológico do que técnico mesmo. O técnico sempre se renova. Tudo em ciência é efêmero... Esta é a graça de fazer ciência: avançar e substituir o que era pouco conhecido. Por isso, a regra do cientista deve ser sempre a humildade frente ao desconhecido e ao exercício de investigar.
E ao sociolinguista, em especial, a “arrogância de cientista” pode ter um efeito contrário: em vez de dialogar com outros linguistas (que trabalhem com usos ou não), olhar apenas para a variação e perder de vista a sistematicidade da língua e outros aspectos a ela relacionados; em termos mais amplos, fora até da Linguística, em vez de combater o preconceito linguístico, criar novos preconceitos; em vez de repensar uma “norma-curta”, passar a debochar da visão social que é lugar-comum e construir um caminho perigoso de quase impor uma fictícia “norma-padrão vernacular” (um normativismo às avessas), tão ditatorial quanto a que se combate; em vez de fazer a ciência avançar e ser divulgada pelos vários agentes sociais (jornalistas, escritores, homens comuns...), criar animosidades e disputas que acabem por nos afastar mais ainda de outros grupos sociais.
Por isso, convido a todos os iniciantes em Sócio ao exercício da humildade da descoberta e da partilha do conhecimento científico (sempre limitado em essência). Talvez seja brega, mas gosto de coisas óbvias (porque elas tendem a não ser vividas): a palavra-de-ordem é afetividade e respeito, na ciência e fora dela.
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Agradecemos à professora Drª. Silvia Vieira pela disponibilidade em responder nossas perguntas.
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