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Entrevista: Professora Maria do Carmo Lourenço Gomes (Universidade do Minho)

A Professora Maria do Carmo, também conhecida como Cacau, é Investigadora Auxiliar no Centro de Estudos Humanísticos na Universidade do Minho e recebe apoio de fundos portugueses da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT-CEECIND/04331/2017, UIDB/00305/2020).


Entrevista realizada por: Nathalia Leite de Sousa Soares, Mariane dos Santos Monteiro Duarte e Patrícia Tavares da Silva (Programa de Pós-graduação em Linguística - Curso Psicolinguística e Interfaces, ministrado pelos Profs. Drs. Márcio Martins Leitão e Juliana Novo Gomes).



1. Conte um pouco da sua trajetória acadêmica: como partiu da graduação de Fonoaudiologia para desbravar o universo da Linguística e, particularmente, da Psicolinguística Experimental? Você acredita que sua experiência como Fonoaudióloga direcionou o seu olhar sobre as questões da Linguagem?


Olhando retrospectivamente, penso que esta trajetória tem sido muito interessante. Não sei se foi a partir da graduação em Fonoaudiologia que comecei a desbravar o universo, não diria apenas da Linguística, mas da linguagem de um modo mais amplo. Antes da Fonoaudiologia, trabalhei muitos anos com crianças na pré-escola e na alfabetização e tinha uma grande preocupação com as dificuldades que algumas dessas crianças enfrentavam no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Nesta altura, o meu entusiasmo estava mais direcionado para a escolarização como um caminho para alcançar a autonomia, a liberdade, a cidadania. E ver essas crianças, ainda muito novinhas, com a possibilidade de serem privadas disso era uma grande frustração. Eu frequentava antes o curso de Pedagogia. Estudava sociologia e filosofia da educação e, claro, os temas de linguagem começavam a aparecer. Mudei de cidade, interrompi o curso, mas levei comigo algumas facetas da linguagem humana que comecei a refletir ali, naquele primeiro curso. Entendia já com muita clareza, por exemplo, a linguagem como um veículo de ideias e conceitos. Que o papel da linguagem ia além da comunicação, influenciando a forma como as pessoas interagem em sociedade e a forma como a sociedade pode ter um impacto sobre as pessoas individualmente. Portanto, as ideias e conceitos que a linguagem veicula precisavam ser criticamente analisados e debatidos, sendo a escolarização um caminho.


Na Fonoaudiologia, encontrei outra faceta da linguagem, a biológica. Tive a oportunidade de explorar conhecimentos em disciplinas das ciências biomédicas e da linguística. Um aspeto singular desse curso foi o ano adicional de estudos e prática na clínica-escola da instituição. Neste ambiente multidisciplinar, trabalhei com outros fonoaudiólogos e também com fisioterapeutas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Essa experiência prática intensiva foi fundamental na minha formação. Permitiu uma compreensão mais alargada da complexidade da comunicação humana e de seus desvios. Aprofundei essa experiência no curso de especialização que fiz depois, em Distúrbios da Comunicação Humana. Como primeira experiência na pesquisa, desenvolvi um estudo para a monografia deste curso (Leitura, escrita e consciência fonológica: intervenção em sala de aula), em uma escola da rede pública, com carências de diversas ordens. O estudo envolvia trabalhar dentro da sala de aula com alunos do 2º e 3º anos, em colaboração com o professor, estratégias de intervenção em leitura, escrita e consciência fonológica. Um dos trabalhos mais gratificantes que fiz.


Cheguei na Linguística, particularmente na Psicolinguística Experimental, com muitas coisas na cabeça e com muito entusiasmo, mas não como barata tonta. Um evento realmente marcante, ocorrido um pouco antes de entrar no Mestrado e durante o curso de especialização, foi um curso de extensão que fiz na PUC-RJ com o Professor José Morais, o grande cientista português e um dos primeiros nomes que me vêm à cabeça quando penso em combate à iliteracia. Neste curso e no seu seu livro A arte de ler encontrei o que precisava para eleger a Psicolinguística Experimental como próxima etapa no meu percurso académico. Entrei no Mestrado em Linguística na UFRJ. Queria ter o Professor Marcus Maia como orientador. Ele aceitou. Chegou a hora de escolher o tema da dissertação. Foi quando me senti um pouco barata tonta. Tinha a expectativa de aplicar aqueles conhecimentos que adquiri antes em um tema que se aproximasse de A arte de ler e da minha monografia da especialização. Não foi possível no contexto da época. Há coisas assim. Comecei o aprendizado de aceitar o que é, como é  ̶ mas com a expectativa de, mais tarde, reconhecer o lado positivo dessas vivências.


A escolha de outro tema acabou por ser mais uma experiência muito marcante no meu percurso académico. A dissertação de Mestrado e, a seguir, a tese de Doutorado, entraram na categoria “trabalhos mais gratificantes”. Trabalhei com interface sintaxe-prosódia no processamento de frases, coorientada pelo Professor João Antônio de Moraes, testando a Hipótese da Prosódia Implícita com dados do português do Brasil. Durante o doutorado, tive uma bolsa de pesquisadora-estudante na City University of New York e fui supervisionada pela Professora Janet Dean Fodor, que propôs formalmente a hipótese que testei. Aprendi muitas outras coisas sobre a linguagem humana, aspectos que ainda não havia explorado, tive mentores fantásticos e encontrei muitos pontos a serem aplicados em estudos sobre processamento de leitura e escrita, em crianças e adultos.


Então, dífícil responder se foi a experiência como fonoaudióloga que direcionou o meu olhar sobre as questões da linguagem. Esta experiência fez muita diferença, mas todas as outras também.


2. Como sua experiência de pesquisadora-visitante na City University of New York (CUNY) influenciou o seu “fazer científico”?


Eu penso que todas as experiências fora da instituição a que estamos vinculados durante o doutorado ou no pós-doc são sempre muito valiosas, especialmente quando estamos abertos a eventuais diferenças que possam existir entre instituições, sejam estas nacionais ou estrangeiras. Somos expostos a uma “cultura” académica diferente, o que pode nos dar uma perspectiva mais ampla das metodologias, das teorias e das práticas científicas e incentivar uma abertura a diferentes pontos de vista e à reflexão crítica. A capacidade de adaptação a um novo ambiente, a compreensão das relações interculturais, a superação de desafios, o desenvolvimento da independência e da autonomia, são todos pontos muito positivos na experiência de passar um tempo em outra instituição. Tudo isso fez parte da minha experiência na CUNY e influenciou o meu “fazer científico”.


3. Como explicitar a importância da Fonética Acústica para os estudos da linguagem?


Sempre que um objeto de estudo envolve examinar algum aspecto relacionado ao modo como a linguagem é produzida, percebida e compreendida, podemos recorrer à área da Fonética, não apenas ao ramo da fonética acústica, mas também aos ramos da fonética auditiva e da fonética articulatória. Os dados da fonética acústica e da fonética auditiva referem-se aos elementos presentes no sinal de fala ̶ segmentais (vogais e consoantes) e “suprassegmentais”, ou prosódicos (entoação, acento e ritmo). Os dados da fonética articulatória referem-se aos movimentos e posições dos órgãos da fala (língua, lábios, palato, pregas vocais) durante a produção dos sons.


A fonética acústica é uma área que oferece métodos objetivos e precisos de análise dos sons da fala e por isso é tão importante para uma ampla gama de estudos sobre a linguagem. Os instrumentos de gravação e de representação visual do sinal acústico nos espectrogramas de som permitem caracterizar os elementos essenciais que compõem o sinal de fala e comparar esses elementos em diferentes línguas, variedades e dialetos, bem como estudar a evolução e as mudanças fonético-fonológicas ao longo do tempo. Os dados fonéticos também permitem compreender melhor como os gestos articulatórios se traduzem em sinais acústicos e como os falantes modificam a sua articulação com base em fatores contextuais, linguísticos, psicológicos, sociais e culturais. Além disso, a área tem uma reconhecida aplicabilidade no domínio clínico das perturbações da fala e da voz e também no domínio da linguística forense. Sem deixar de mencionar que é uma área básica para o desenvolvimento de tecnologias de reconhecimento e síntese de fala e tem expandido de maneira singular o uso de modelos e métodos computacionais para análise de grandes corpora e para o aprendizado de máquina (machine learning), uma subárea da inteligência artificial. A eficiência que notamos hoje nos assistentes de voz é um exemplo. Os algoritimos desenvolvidos (um conjunto de instruções que uma máquina segue para alcançar um objetivo específico) são cada vez mais precisos e isto acontece, em parte, pela contribuição das pesquisas na área da fonética. Esses algoritimos são usados para analisar as propriedades de fala, incluindo os segmentos fonéticos-fonológicos, a coarticulação e a prosódia. Então, quanto mais detalhadas as informações das diferentes línguas fornecidas ao sistema, melhor será o desempenho das máquinas. Mas não são apenas as informações sobre os segmentos da fala. Várias informações entram nesses algoritimos. As pistas prosódicas, as informações sobre as ambiguidades (por exemplo, palavras homófonas), contexto de ocorrência, características individuais de fala e voz dos usuários, incluindo daqueles com transtornos de fala, são fundamentais para o reconhecimento da fala e para o output da máquina.


Para fins de pesquisa psicolinguística, é preciso enfatizar que os ramos da fonética acústica e da fonética auditiva se complementam, de maneira essencial, porque o primeiro analisa e descreve as características físicas do sinal de fala ̶ frequência fundamental, nível de intensidade, forma e amplitude da onda sonora, duração ̶ e o segundo procura explicar como essas características físicas são percebidas e interpretadas pelos ouvintes. As características dos sons da fala descritas pela fonética acústica são medidas objetivas, como eu disse antes, captadas por instrumentos de gravação e representadas visualmente por programas que fornecem espectrogramas de som. A percepção e interpretação dessas características pelos ouvintes são subjetivas, na medida em que podem ser influenciadas por vários fatores, tais como sensoriais, linguísticos, psicológicos, emocionais, nível de ruído do ambiente. A Psicolinguística pode associar esses dados objetivos e subjetivos para interpretar as respostas dos ouvintes aos estímulos falados.


Apenas para ilustrar porque é importante nos valermos dos dados desses dois ramos nos estudos da psicoliguística, vou dar um exemplo. Em um estudo muito interessante publicado na Scientific American em 1970, Richard Warren e Roslyn Warren demonstraram que a habilidade de interpretar os sinais físicos dos sons da fala pode ser limitada e, por vezes, provocar uma “ilusão auditiva”, uma falsa percepção, porque o cérebro interpreta mal ou distorce sons que, do ponto de vista físico, os ouvidos recebem. No artigo, os autores introduzem o conceito de “restauração fonêmica” (phonemic restoration), um fenômeno auditivo em que os ouvintes preenchem um som de fala ausente, mesmo quando há um ruído que mascara ou obscurece este som. Eles apresentaram a alguns ouvintes uma frase em que um fonema de uma palavra havia sido cortado da gravação e substituído pelo som de uma tosse, com a mesma duração do fonema eliminado, e observaram que o fonema em falta era ouvido tão claramente como todos os outros que estavam fisicamente presentes. Este fenômeno demonstra a capacidade do cérebro para prever e “restaurar” ̶ com base no contexto e no conhecimento linguístico prévio ̶ segmentos de fala que estão ausentes ou mascarados por ruídos. É o que nos permite, na ausência de desordens do processamento auditivo, acompanhar uma conversação em ambiente ruidoso, por exemplo. Mas também demonstra que a realidade física dos sons nem sempre corresponde ao que é percebido pelos ouvidos, criando por vezes ilusões e confusões auditivas, tal como acontece com estímulos visuais.


No campo do processamento de frases, Iglika Stoyneshka-Raleva, Janet Fodor e Eva Fernández usaram o fenômeno da restauração fonêmica como um método para explorar relações entre prosódia e processamento sintático, em um artigo publicado em 2010. Neste e em inúmeros outros estudos tem-se demonstrado como a prosódia pode influenciar a nossa maneira de perceber e processar frases produzidas oralmente.


Podemos ainda acrescentar interações entre percepção auditiva e percepção visual, como o “efeito McGurk”, reportado em 1976 por Harry McGurk e John MacDonald na Nature. Este é um fenómeno perceptivo muito conhecido em que o nosso cérebro combina informação visual e auditiva da fala e, quando os dois tipos de informação não coincidem, cria-se uma percepção enganosa. O fenómeno ocorre quando ouvimos um determinado som enquanto observamos movimentos labiais que correspondem a outro som. A informação visual entra em conflito com a informação auditiva, levando a uma percepção alterada do som da fala. No experimento de McGurk e MacDonald os participantes eram expostos a estímulos audiovisuais em que os movimentos labiais de sílabas produzidas em sequência (ba-ba, ga-ga, pa-pa, ka, ka) não coincidiam com o estímulo auditivo. Por exemplo, os movimentos labiais eram da produção de [ga-ga] mas o som que ouviam era [ba-ba]. Quando solicitados a repetir o que ouviam no vídeo, a taxa de erros era substancial. Os participantes ̶ que incluia pré-escolares, crianças em início da escolarização e adultos ̶ reportavam de modo consistente ter ouvido sons como “gabga”, “bagba”, “baga”, “gaba”. Quando eram solicitados a repetir os mesmos sons na condição em que os estímulos eram apenas auditivos, isto é, sem informação visual de movimentos labiais, a taxa de erros era ínfima.


Há um artigo de revisão interessante sobre o efeito McGurk, trazendo também questões relevantes de caráter metodológico e teórico que servem para pesquisas mais gerais de percepção e integração audiovisual no processamento da fala, publicado em 2017, por Agnès Alsius, Martin Paré e Kevin Munhall. Vale a pena a leitura.


Esses estudos nos fazem pensar na complexidade da experimentação psicoliguística, não apenas especificamente sobre a percepção e integração audiovisual, mas de um modo mais geral sobre os mecanismos de produção e percepção da fala.


4. Como a interface Psicolinguística Experimental-Fonética Acústica, na sua visão, pode contribuir para o entendimento do processamento de sentenças?


Os dados da fonética acústica nos ajudam a entender como certas propriedades acústicas da fala interagem com os mecanismos de processamento de frases. Quando combinados aos dados da psicolinguística experimental fornecem validação empírica para aperfeiçoar os modelos de processamento de frases e, também, alguns critérios metodológicos dos nossos estudos.


5. Como a Prosódia pode influenciar o processamento de sentenças?


Os estudos de produção e percepção da fala demonstram já há muito tempo que a prosódia fornece pistas para orientar a compreensão de frases, ajudando o ouvinte a extrair o significado intencionado pelo falante e de suas emoções. Por exemplo, as pistas prosódicas são relevantes para indicar fronteiras entre palavras, constituintes sintáticos e frases; desfazer ambiguidades; sinalizar ênfase em certas unidades do enunciado (incluindo sílabas e palavras); estabelecer distinções entre tipos de frases (exclamativas, interrogativas, afirmativas, imperativas); expressar emoções.


No campo do processamento de frases, uma atenção mais evidente na literatura esteve dirigida a interações entre estrutura sintática e estrutura prosódica, mais especificamente para explorar como a divisão da frase em constituintes prosódicos (fraseamento), a distribuição de acentos tonais (entoação) e a alternância entre sílabas fortes e fracas (padrão de ritmo) podiam influenciar a compreensão da linguagem e a interpretação de frases. Na década de 1970, Ilse Lehiste conduziu um estudo que se tornou uma referência na área e inspirou muitos outros pesquisadores. Ela analisou como frases com ambiguidade sintática (estrutural) podiam ser interpretadas pelos ouvintes com base em diferenças nas pistas prosódicas.


A literatura sobre o tema a partir daí é extensa e eu correria o risco de tornar a apresentação das questões investigadas muito genéricas e superficiais. Vou indicar três nomes que me ocorrem de imediato e os trabalhos deles podem ser pesquisados, até diria “rastreados”. O primeiro é o Paul Warren, cujo trabalho vai muito além do tema prosódia, e o seu interesse em psicolinguística é muito explícito. Outros dois são o da Amy Schafer e da Sun-Ah Jun. Esses nomes estão associados estudos que tiveram uma influência nas minhas pesquisas iniciais sobre prosódia e compreensão de frases.


De um modo bem geral, eu diria que há um conjunto (enorme) de trabalhos que torna evidente o impacto das informações prosódicas sobre interpretação de ambiguidades sintáticas e semânticas em estudos de produção oral e de percepção auditiva, outro conjunto que examina de modo mais estrito o impacto dessas informações no processamento de frases on-line. Há um pequeno artigo de opinião intitulado Prosodic phrasing is central to language comprehension, publicado em 2006 por Lyn Frazier, Katy Carlson e Charles Clifton Jr., que apresenta uma abordagem para conciliar a existência de restrições gramaticais com a grande variabilidade nos padrões de entoação, ritmo e fraseamento prosódico de frases produzidas na fala. Então sabemos que a prosódia pode influenciar o processamento de frases de muitas maneiras diferentes e, portanto, explicar o “como” já é um pouco mais complicado. Esta é apenas uma das muitas publicações que discutem a prosódia contando com nomes influentes na área de processamento de frases. O certo é que há um consenso: “Prosody matters”, aproveitando o título da primeira seção do artigo que acabei de mencionar.


Mas o tema se tornou ainda mais interessante (e relevante) quando começamos a considerar que esta influência da prosódia poderia acontecer também na leitura silenciosa ̶ o que é fundamental porque a psicolinguística se vale principalmente de dados de leitura silenciosa. A ideia é que nós também projetamos mentalmente a estrutura prosódica sobre o estímulo escrito. Ter isto em conta nos modelos de processamento propostos faz muita diferença. E também faz diferença considerar a possibilidade de artefatos experimentais serem criados, por exemplo, com a segmentação nos estudos de self-paced reading. Esta última preocupação foi apontada, por exemplo, por Elisabeth Gilboy e Josep Sopena em um estudo de 1996 ̶ com orações relativas estruturalmente ambíguas daquele tipo famoso Alguém atirou no empregado da atriz que estava na varanda. Entre os resultados, foi observado que quando a segmentação dividia a oração principal e a oração relativa havia uma preferência para associar a oração relativa ao antecedente não-local (o empregado). Mas quando segmentações menores eram aplicadas e separavam o empregado e a atriz os participantes do estudo não mostravam nenhuma preferência. Foi então sugerido que, neste último tipo de segmentação, os leitores não projetavam um padrão prosódico usual por causa da ausência de pistas claras de fronteiras prosódicas. Eu também observei efeitos de segmentação nos estudos de questionário da dissertação de mestrado, da tese de doutorado e, mais tarde, em 2012, nos experimentos de um estudo que conduzi com uma aluna, a Verena Lindemann, com dados do português europeu. As observações desses estudos me fazem acreditar (verdadeiramente) que a segmentação é um dos fatores que podem afetar a compreensão de frases. Eu disse “um dos fatores” porque acredito também que haja interações mais complexas entre tipo de segmentação e comprimento de constituites (testemunhei isso em muitos dos meus estudos), modo de desfazer a ambiguidade (como observamos no estudo de 2012), memória de trabalho, como alguns estudos demonstraram, e por aí vai.


Em suma, novamente digo que explicar o “como” é um pouco mais complicado. A tarefa não é muito fácil. A prosódia envolve muitas nuances; varia muito entre as línguas; a relevância das pistas varia muito entre os diferentes tipos de frases. Acredito também que haja diferenças individuais quanto ao processamento auditivo que poderiam afetar a habilidade das pessoas para organizar a estrutura prosódica das frases.


6. O estudo dos efeitos da Prosódia no processamento de sentenças pode impactar o ensino de línguas (maternas e/ou estrangeiras)?


Sim, tenho segurança sobre isso, ainda que não tenha estudado especificamente questões dessa natureza. A prosódia varia muito entre as línguas, afeta a produção e a compreensão oral, transmite muitas diferenças sutis de significado, humor, emoções, e da estrutura das frases. Tem, por isso, muitas implicações para o ensino de línguas.


7. Como fonoaudióloga, as suas pesquisas em algum momento focalizaram distúrbios da linguagem, se sim, quais pesquisas e resultados você poderia destacar para nós?


As pesquisas que desenvolvi até agora não focalizaram diretamente os distúrbios da linguagem. Mas eu diria que quase todas as pesquisas que fiz poderiam ter uma aplicação neste campo.


No trabalho que mencionei do curso de especialização, por exemplo, havia uma preocupação com os transtornos da linguagem que, de alguma maneira, tinham um impacto negativo na aprendizagem da leitura e da escrita, especialmente em populações com recursos escassos, e o meu foco estava na identificação e remediação precoces desses transtornos. Esse trabalho explorou alguns fatores que podem influenciar o processo de aprendizagem das crianças, destacando como o insucesso nas habilidades de leitura e escrita pode trazer consequências não apenas para o indivíduo, mas também para a sociedade, especialmente em ambientes escolares onde muitos enfrentam dificuldades sem ter acesso ao apoio que seria necessário. A literatura que pesquisei na época ̶ e lá se vão muitos anos desde 1999 quando submeti o trabalho ̶ enfatizava claramente que lidar com esse problema requer esforços em várias frentes e que não há uma solução única. O ponto principal do estudo era investigar como a intervenção de um fonoaudiólogo, trabalhando junto com os professores em sala de aula, poderia trazer benefícios às crianças. A minha intenção era destacar a importância de atender a um grupo de crianças ao mesmo tempo, utilizando o ambiente escolar como um espaço de aprendizagem colaborativa e auxiliando os professores a compreenderem melhor os aspectos linguísticos envolvidos nesse processo. Eu já havia trabalhado com crianças de escolas públicas que enfrentavam problemas de aprendizagem, no estágio do último ano do curso da graduação. Conhecia bem as dificuldades de acesso ao atendimento clínico e sabia que a prevenção e a intervenção precoce eram mesmo muito importantes nesses casos. Lembro-me de um artigo que me emocionou na época e que de certa forma impulsionou a perspectiva que tenho ainda hoje sobre a necessidade de medidas de prevenção e de intervenção precoce em sala de aula. Era um trabalho do Joseph Torgesen, de 1998, cujo título já diz tudo: Catch them before they fall.


Então, na pesquisa eu acompanhei dois grupos de crianças de segundo ano em duas escolas públicas. Primeiro identifiquei algumas dificuldades quanto à ortografia, leitura e consciência fonológica a partir de instrumentos de avaliação. Depois elaborei um conjunto de estratégias de otimização e intervenção que foram aplicadas, alternadamente, durante alguns meses, a um grupo experimental e a um grupo controle. O desempenho dos dois grupos foi comparado numa avaliação no início do programa e outra no final. Os resultados foram muito bons e a experiência também. Daí eu ter reforçado no trabalho que a intervenção em sala de aula pode trazer benefícios imediatos às crianças com dificuldades e também prevenir essas dificuldades, além de contribuir para o desenvolvimento das outras crianças e para aperfeiçoar as estratégias pedagógicas aplicadas pelos professores.


Nas pesquisas de mestrado e doutorado, precisei fazer uma pausa sobre este assunto, como comentei antes, quando falei do meu percurso acadêmico. Mas não perdi de vista o interesse nos transtornos de linguagem, pelo contrário. No curso da graduação e no de especialização estudei muito sobre processamento auditivo. Acrescentar ao conhecimento que tinha como fonoaudióloga, estudos sobre produção e compreensão da fala, explorar os recursos da Fonética, as ferramentas da Psicolinguística e incluir um tópico novo, a “prosódia implícita”, foi muito empolgante.


Os testes diagnósticos tradicionais de transtornos do processamento auditivo incluem a avaliação audiológica convencional em que se verifica a integridade do aparelho auditivo e testes que avaliam mais especificamente habilidades auditivas relacionadas ao processamento do sinal de fala, como por exemplo, localização e memória sequencial de sons verbais e não verbais. Mas nós ainda não sabemos tudo sobre processamento auditivo. É um mecanismo muito complexo. Nós sabemos, por exemplo, que a organização de uma frase em “pacotes” (chunks) delimitados por rupturas prosódicas ̶ fraseamento prosódico ̶ é essencial na comunicação.


A interpretação de uma frase como Enquanto a senhora costurava a meia caiu da cadeira é dependente do local da ruptura prosódica. Se a ruptura estiver depois de meia, foi a senhora que caiu da cadeira. Mas se estiver depois de senhora, foi a meia que caiu da cadeira. Em nosso dia-a-dia, nem sempre notamos este tipo de ambiguidade porque o falante as produz já com as pistas prosódicas necessárias para que o ouvinte interprete o significado intencionado ou há um contexto que permite a interpretação imediata. Mas se apresentarmos uma frase como esta sem as pistas prosódicas ou sem contexto, o ouvinte terá que recorrer à sua própria habilidade de organização e reestruturação para atribuir a ela um significado. Algumas frases são mais dependentes de pistas prosódicas para serem compreendidas do que outras, mas o fato é que estas pistas são fundamentais para o sucesso na comunicação.


O aspecto interessante da “prosódia implícita” é hipotetizar que a habilidade de organização do enunciado em chunks prosódicos não é necessária apenas na fala, mas também na leitura silenciosa. Então, nós podemos pensar que esta habilidade, tanto na fala como na leitura silenciosa, pode estar comprometida em algumas pessoas, em grau de severidade diferente, e ser incluída no leque de transtornos da linguagem. Seria necessário aprofundar esta questão não apenas do ponto de vista mais teórico da psicolinguística, mas no campo clínico, diagnóstico e terapêutico.


Também no âmbito de um projeto que tenho em coautoria com a minha colega Celeste Rodrigues, da Universidade de Lisboa ̶ o EFFE-On  ̶ que integra dados de escrita e fala de crianças portuguesas em início da escolarização, havia a intenção de disponibilizar material para pesquisas sobre a aprendizagem da escrita e de transtornos associados. Em alguns de nossos trabalhos, nós sugerimos que a observação sistemática das formas ortográficas não-convencionais, que aparecem frequentemente na escrita da criança, nos permite compreender melhor perfis de desempenho, individuais e do grupo e estabelecer diferenças dialetais. Esses dados servem, então, não apenas para estudos linguísticos e psicolinguísticos, mas são também passíveis de análise por parte de pesquisadores que se dedicam aos transtornos da linguagem.


8. Como foi a sua ida para Portugal, inicialmente para a Universidade de Lisboa e depois para a Universidade do Minho? Que diferenças e semelhanças existem no contexto acadêmico e na pesquisa feita no Brasil e em Portugal?


Foi primeiro uma surpresa. Não tinha a intenção de sair do Brasil quando terminei o doutorado. Mas sem dúvida esta experiência veio acrescentar muitos ganhos ao meu percurso acadêmico. Claro que no início temos muitas expectativas baseadas nas experiências do “nosso ambiente”, e lidar com os desafios de outro contexto, outro país, outra cultura, não deixa de ser um grande desafio.


Há algumas diferenças no contexto académico e algumas na pesquisa, mas elas se devem principalmente a fatores históricos, culturais, linguísticos e estruturais. Um exemplo é a escolha de tópicos de pesquisa. No Brasil, vemos um foco maior em pesquisas sobre variação linguística e línguas indígenas do que em Portugal.


As prioridades de pesquisa também são diferentes porque se baseiam, em parte, nas necessidades locais, na dinâmica social, política e econômica de cada país. Outra diferença é o volume de pesquisa acadêmica produzida nos dois países. No Brasil é maior do que em Portugal devido obviamente à maior densidade populacional e ao maior número de pesquisadores e docentes.


Como consequência da localização geográfica, as parcerias internacionais estabelecidas se distinguem em alguma medida também. Apesar de os programas de intercâmbio serem oferecidos nos dois países, as colaborações com países da América Latina são mais frequentes no Brasil, e com países europeus em Portugal.


Ou seja, são diferenças naturais de dois países que, apesar de terem uma conexão histórica e linguística, diferem em muitos outros aspectos.


9. Você poderia descrever como se deu a criação do Corpus de escrita e fala de crianças EFFE-On e como ele funciona para quem tiver interesse?


Tenho que dizer que é outro dos trabalhos mais gratificantes que faço. Já tenho uma coleção de trabalhos gratificantes, não sei se notaram. A ideia surgiu nas inúmeras horas de conversa com a minha colega e (muito) amiga, a Professora Celeste Rodrigues. Trabalhávamos na mesma sala na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ela parecia empolgada com o meu acalorado discurso sobre erros ortográficos na escrita de crianças em início da escolarização ̶ e eu com o belo discurso dela sobre fonologia e fonética e nas possíveis influências na aprendizagem da ortografia. Em meados de 2012, acabamos por encontrar um ponto comum de interesse para desenvolver um projeto, destinado à comunidade, princialmente a pesquisadores e professores interessados neste tema. Fizemos uma primeira recolha de dados em uma escola de Lisboa e logo constatamos que o projeto, que passou a ser chamado EFFE (Escreves como falas, falas como escreves), precisava avançar. Nos focamos principalmente nos erros de natureza fonético-fonológica, mas a ideia era (ainda é) estudar diferentes facetas da escrita inicial das crianças. O termo “erro” foi logo substituído por “formas ortográficas não-convencionais”, ou FN-Cs, para abreviar. As crianças pareciam verdadeiros linguistas em seus textos, deixando revelar aspetos da língua com muita competência, tal como imaginávamos.


De maneira simples, EFFE-On é uma ferramenta computacional, um corpus online anotado com dados de escrita e fala de crianças portuguesas nos primeiros anos de escolaridade de diferentes regiões dialetais. Foi lançada em 2015 como um alargamento do Projeto EFFE e está agora registrada como recurso linguístico do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. É aberta à comunidade e periodicamente atualizada.


A ideia de criação do corpus online, surgiu da intenção em compartilhar com outros profissionais interessados neste tema, dados para pesquisas sobre a escrita de crianças portuguesas em anos iniciais de escolaridade. A disponibilização dos dados na web pretendeu servir a uma ampla gama de estudos em diferentes campos da Linguística e em outras áreas, como a do Ensino, Terapia de Fala e Linguagem, Psicologia, Sociologia, entre outras. O estudo sobre o desenvolvimento da aprendizagem da ortografia já era bastante produtivo com dados do português brasileiro, mas a disponibilização de dados no português europeu era um projeto inédito.


Os dados disponibilizados na ferramenta são recolhidos com uma metodologia específica entre os anos escolares e entre as localidades das crianças. Parte desse material é recolhido de modo transversal e parte de modo longitudinal.


A ferramenta exibe aos usuários textos narrativos e descritivos das crianças na sua forma manuscrita (formato de imagem), transliterada, e normalizada (editada), além de fragmentos de áudio referentes à pronúncia das crianças do 2º ano, sempre que na entrevista do investigador com a criança tenha surgido uma palavra escrita por ela de forma não convencional. Qualquer um dos formatos de texto estão disponíveis para download na própria plataforma. Também exibe informações sociodemográficas e algumas relacionadas à história das crianças como, por exemplo, se a criança já foi submetida a acompanhamento por fonoaudiólogo (terapeuta da fala). Isso permite que pesquisadores tenham em conta alguns aspectos que poderiam influenciar o desempenho ortográfico.


Até ao momento, o projeto tem dados recolhidos, com a metodologia que desenhamos inicialmente, em seis regiões dialetais de Portugal (Lisboa, Elvas, Bragança, Chaves, Canas de Senhorim e Porto). Mais recentemente, começamos a recolher dados com outras metodologias e já concluímos recolhas em cinco novas localidades, incluindo a Madeira. Esses dados têm vindo a ser integrados na plataforma e esperamos que em breve também estejam disponíveis. A ferramenta já tem, no entanto, cerca de 1.300 textos. E pretendemos alargar ainda mais a abrangência do corpus no que diz respeito à cobertura das variedades linguísticas das crianças. Estamos trabalhando também em novas atualizações do Projeto da EFFE-On e esperamos ter novidades em breve.


Há uma série de instruções e outras informações sobre como usar o EFFE-On, na página do corpus, atualmente abrigada em http://teitok.clul.ul.pt/effe/en/index.php?action=home Mas sempre podem entrar em contato conosco, se precisarem de outras informações.


10. Que estudos já realizados com base no corpus EFFE-On você poderia destacar e descrever brevemente para nós?


O EFFE-On envolveu estudantes de graduação e mestrado e tem gerado produções científicas diversas, entre artigos, dissertações e apresentações em eventos acadêmicos. Há diversos trabalhos já publicados, listados na própria página do EFFE-On. Apesar das várias possibilidades de análise e interpretação dos dados, nossos trabalhados têm estado principalmente concentrados em análises de caráter fonético/fonológico. Mas o corpus, como se apresenta atualmente, já exibe uma diversidade de dados passíveis de serem analisados em relação a outros aspectos, por exemplo, do ponto de vista lexical e sintático. Estamos certas de que os dados do corpus constituem um material muito rico e passível de análise nessas e em outras vertentes.


No mesmo ano em que o EFFE-On foi disponibilizado na web, em 2015, preparamos um artigo com duas estudantes, a Isabel Alves e a Patrícia Costa, colaboradoras do projeto na época. Nesse artigo estão descritos os principais objetivos do nosso trabalho e os detalhes metodológicos relativos às recolhas, que estavam apenas começando. Mas alguns aspectos relativos à plataforma foram atualizados desde então. Apesar de não haver muitos dados acho esse artigo interessante em termos de apresentação sobre a proposta.


Em 2016 publicamos um artigo mais extenso que também trata da proposta, mas além disso traz alguma análise e reflexão sobre o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, explorando como as crianças desenvolvem suas habilidades nesta área e superam desafios durante o processo. Começamos por destacar o interesse natural das crianças pela leitura e pela escrita, e como as primeiras tentativas de escrita delas revelam conhecimentos sobre a língua e sobre as relações entre escrita e fala. Apresentamos ainda uma breve revisão de estudos psicolinguísticos que tratam de mecanismos mentais envolvidos no sistema de produção escrita, alguns resultados de estudos linguísticos e na área do ensino.


Enfim, penso que o que fizemos neste artigo dá uma boa ideia sobre as motivações por detrás da propsta, deixando algumas perspectivas para orientar pesquisas futuras. Infelizmente este arigo não é de acesso aberto, mas acho que será possível a disponibilização de uma versão via instituição. O título é EFFE: Escreve como falas ̶ falas como escreves? e foi publicado na Revue Romane.


As publicações que se seguiram ̶ até ao momento, penso que cerca de dez ̶ tratam de questões mais específicas sobre formas ortográficas não-convencionais em dadas amostras. Por exemplo, em um estudo longitudinal com dados do 2º e 4º anos de escolaridade, publicado em 2016, examinamos o desempenho de crianças de Lisboa quanto à grafia de palavras com /e/ acentuado seguido por consoante palatal (como em sexta, fecha), o ditongo /el/ (como em leite, queijo), e o ditongo /oU/ (como em tesoura, acabou). Nesse trabalho confrontamos alguns dados de escrita com a oralidade das mesmas crianças. Vimos que as crianças tendem a apoiar-se em sua pronúncia quando escrevem, nos primeiros anos de escolaridade, e que esta tendência diminui ao longo dos anos.


Isto não é novidade, sabemos há muito tempo que acontece. No entanto, a experiência me diz que é útil avançarmos em pesquisas sistemáticas e que também é útil criar uma maior consciência entre os professores sobre quais estruturas representam maior dificuldade nas diferentes etapas do aprendizado. Os professores sabem muito com base na experiência que têm, mas esse conhecimento não é sistematizado, é principalmente sobre as crianças com as quais trabalham ou trabalharam. É importante que tenham acesso a um conjunto mais alargado de dados, de outras crianças, de outros dialetos, de outras escolas. Que compreendam as motivações linguísticas das formas não convencionais escritas pelas crianças. Ou seja, que visualizem um quadro mais geral de dados e se familiarizem com análises linguísticas deles. Esta visão é o que nos ajuda a criar de antemão, com maior segurança, estratégias pedagógicas dirigidas a certos tipos de estruturas que são um pouco mais difíceis para as crianças, mas não para as “nossas” crianças, não apenas para as crianças a, b ou c, para as crianças de modo geral. De outro maneira, parte dos professores tende a fixar-se no “erro”, como sinônimo de “falha”, a não olhar de frente para aquilo que é um processo natural de aprendizagem.


Claro que será importante também que, para além dos dados, esses professores tenham acesso a alguns conhecimentos de caráter teórico, linguístico e psicolinguístico, para que criem estratégias apropriadas. Por exemplo, uma tarefa comum em sala de aula, é pedir para as crianças que dentre uma lista de palavras identifiquem as que são escritas de “forma errada”. Esta não me parece uma boa estratégia, porque a exposição a uma determinada forma ortográfica não convencional cria uma representação no cérebro, da mesma maneira que a exposição a uma forma convencional (correta). E o acesso ao léxico (no momento da escrita) pode levar a qualquer uma das formas, seja ela convencional ou não. Experimente visualizar seguidamente palavras escritas de forma não convencional e em poucas horas correrá o risco de escrevê-las desta forma, ainda que já tenha uma representação bem estável da forma convencional. Aproveite para experimentar escrever palavras escritas em uma lingua que não conhece ou conhece pouco apenas ouvindo essas palavras (como em um ditado). É provável que cometa alguns “erros”. E se olhar bem para eles verá que usou informações sobre a sua língua materna para representar certos sons ou sequências de letras que não fazem parte do inventário da sua língua. O processo não é exatamente o mesmo que se dá com as crianças aprendendo a escrever, mas é parecido.


Essa perspectiva está presente nos trabalhos publicados com os dados do EFFE-On, listados plataforma. Dentre eles, alguns meus e da Celeste e da Celeste com outros colegas. Mas ainda há muito trabalho pela frente com os dados do corpus. E esperamos que sejam feitos por outros pesquisadores também.


11. Fale um pouco da sua experiência no desenvolvimento de uma plataforma web para experimentos psicolinguísticos offline com foco na compreensão da tomada de decisão? Como a pandemia impactou nesse seu projeto?


A motivação para desenvolver a plataforma web surgiu da experiência com a experimentação psicolinguística dirigida a questões de compreensão e interpretação de frases. Vinha refletindo sobre essas questões há muito tempo. Uma delas era o fato de priorizarmos o uso de medidas on-line e, em certa medida, subestimarmos o uso das medidas off-line nos estudos de processamento de frases. Entender os processos mais conscientes e reflexivos do participante em resposta a um estímulo com técnicas off-line sempre me pareceu tão importante para a área quanto entender os processos mais automáticos capturados momento a momento com técnicas on-line.


A proposta consistia basicamente em explorar e estudar atitudes e comportamentos envolvidos no processo de tomada de decisão, com ênfase em pistas sobre o grau de confiança, hesitação e engajamento dos participantes enquanto respondiam a questionários através da web. Também havia uma preocupação em ter seriamente em consideração os desafios metodológicos da experimentação baseada na web e pesquisei bastante sobre isso enquanto elaborava a proposta. Fiquei motivada com muitos trabalhos já realizados sobre o tema, alguns deles do Professor Ulf-Dietrich Reips, da Universidade de Konstanz, fundador do primeiro laboratório para realização de experimentos reais na web, em 1994 (Web Experimental Psychology Lab). Em um desses trabalhos, de 2017, que tem John Krantz como primeiro autor, foi bem salientado que era primordial dirigir a atenção para a formação de pesquisadores, professores e estudantes sobre a forma de conduzir investigação na web. Eles relatam que se deparavam continuamente com questões relacionadas a estudos construídos de forma inadequada, e em um questionário aplicado a investigadores que haviam realizado experiências na web encontraram algumas das possíveis razões. Um dado preocupante para eles era que quando esses investigadores foram questionados sobre as razões que os havia levado a conduzir pesquisas na web, as motivações mais salientes eram obter um número maior de participantes, o menor custo e a facilidade de uso das ferramentas disponíveis. Pouca ou nenhuma preocupação com critérios metodológicos e de tratamento dos dados ficou evidenciada. A mensagem me pareceu clara: as tecnologias emergentes estavam introduzindo novas perspectivas de investigação em vários campos científicos, mas o que era inquestionável era que o desafio dos investigadores seria também aprender a fazer o melhor uso dessas tecnologias. Falei um pouco sobre esse tema em uma apresentação online em 2021, publicada ao vivo no YouTube na série On Linguistics, organizada pelo Professor Marcus Maia.


Mas voltando à Psicolinguística, as respostas de final de frase refletem mais do que a integração de informações relacionadas aos estímulos em si, elas também podem trazer sinais da presença de estratégias psicológicas, individuais e mais gerais, a que o participante recorre para realizar a tarefa que lhe é proposta. Sim, porque o objetivo final da leitura ou audição de um estímulo linguístico é a compreensão e o participante, quando motivado ou engajado na tarefa, fará esforços para alcançar este objetivo da melhor maneira possível. Neste ponto sugiro a leitura do artigo de Fernanda Ferreira e Zoe Yang, publicado em 2019, que traz algumas dessas questões e outras sobre as quais eu própria vinha refletindo há alguns anos e enquanto elaborava a proposta. Para o pesquisador, então, importa também analisar (bem) as respostas dos participantes. Vários trabalhos experimentais têm demonstrado que os participantes por vezes constroem representações superficiais para uma frase e a interpretam erradamente, como proposto pela Teoria Good Enough. Se for assim, mesmo para interpretar adequadamente os resultados on-line, é necessário avaliar as representações construídas durante o processo de compreensão.


De facto, temos evidências de que o próprio tipo de pergunta feita aos participantes ao final da apresentação de um estímulo pode influenciar suas respostas (a tomada de decisão sobre um estímulo) e eventualmente favorecer a criação de estratégias que se refletem no processamento. Um exemplo é o estudo de Benjamin Swets, Timothy Desmet, Charles Clifton Jr. e Fernanda Ferreira, publicado em 2008. Em um experimento de leitura automonitorada, frases com orações relativas eram manipuladas de modo que um tipo era ambígua e outros dois tipos tinham a ambiguidade desfeita em favor de um dos dois locais para a aposição da oração relativa. O tipo de pergunta no final da frase também foi manipulado, entre sujeitos. Um tipo sondava a interpretação dos participantes sobre a aposição da oração relativa. Um segundo tipo sondava a interpretação de maneira muito superficial, ou seja, sem remeter o participante à região crítica de aposição da oração relativa. O terceiro tipo também era superficial, mas ocorria apenas em um de cada 12 estímulos, aleatoriamente. As respostas eram do tipo “sim/não”. Há muitos detalhes interessantes entre os resultados, mas algumas observações são no mínimo curiosas: os participantes que viam o tipo de pergunta que sondava a interpretação sobre a aposição da oração relativa, inspecionavam mais cuidadosamente a região em que a ambiguidade podia ser desfeita durante a apresentação dos itens experimentais (isto é, durante a apresentação online); os participantes demoravam mais tempo nas questões que sondavam a interpretação sobre a aposição da oração relativa do que nas questões superficiais sobre a interpretação dessas frases; os participantes demoravam mais tempo para responder as questões sobre a interpretação quando o tipo de frase era aquele em que a aposição da oração relativa era deixada ambígua do que nos outros dois tipos, com ambiguidade desfeita.


Para além do que podemos abstrair para refletir sobre os modelos teóricos de processamento da linguagem, esses dados deixam claramente revelar que existe uma dinâmica na situação experimental. Os participantes não tratam cada um dos estímulos experimentais como se fossem únicos, ainda que apareçam separadamente e entre inúmeros itens não experimentais. Eles não respondem a questões de final de frase, baseando-se unicamente no estímulo a que acabaram de ser expostos. Por isso é natural que criem estratégias para resolver as questões que lhes são colocadas ou que deixem revelar atitudes e comportamentos além daqueles que são esperados pelo pesquisador para a realização da tarefa. Essas atitudes e comportamentos, podem refletir-se nos dados e “corromper” de alguma maneira os resultados, ou pelo menos dificultar a sua interpretação.


Um artigo dirigido à area da Psicologia Social, mas que traz insigts bem interessantes para pesquisadores de outras áreas experimentais, foi publicado em 1962 por Martin Orne. O autor começa por reconhecer a preocupação da psicologia experimental no controle das variáveis e na minimização das influências externas. Destaca uma série de pistas, por vezes sutis, no ambiente experimental que revelam padrões de comportamento gerais dos participantes em relação à própria situação experimental. Ele sublinha que os participantes não são entidades passivas nos experimentos. Ao contrário, estão ativamente empenhados em interpretar o contexto situacional e muitas vezes tentam entender os objetivos e as expectativas do pesquisador e, de maneira consciente ou não, alteram o seu comportamento para se ajustarem a esses objetivos e a essas expectativas. Apesar dos esforços dos pesquisadores para minimizar influências de fatores externos e evitar artefatos experimentais, esses fatores são uma causa frequente de enviesamento nos dados e podem levar a uma interpreção reduzida dos resultados.


Nós sabemos disso, não apenas porque é óbvio, mas porque vemos sinais nas interações com os participantes e porque a literatura psicolinguística tem evidências a este respeito. Um dado interessante, mencionado brevemente no artigo de Swets e seus colegas, que mencionei, é que os participantes demoravam mais tempo para responder as questões em que a resposta correta era “não” (em vez de “sim”). Dar uma resposta negativa seria mais custoso para os participantes do que dar uma resposta positiva?


Também em um estudo exploratório com a Eloisa Pilati e a Carolina Castro, implementado na plataforma, encontramos um comportamento curioso entre os participantes. Antes do experimento que examinava a influência do método de instrução da gramática no desempenho de estudantes do Ensino Médio, os participantes foram submetidos a uma sessão de ensaio com afirmativas que eram indubitavelmente verdadeiras (O sol nasce todas as manhãs), outras que eram indibitavelmente falsas (O sangue humano é verde) e ainda outras de opinião (O dinheiro é o único caminho para a felicidade). As opções de resposta eram as mesmas usadas no experimento principal (“sim, “acho que sim”, “não”, “acho que não”). Uma das observações interessantes foi a diferença significativa encontrada nos tempos de resposta para os estímulos desta sessão de ensaio: os participantes demoravam significativamente mais tempo para responder quando davam uma resposta errada, comparado ao tempo que demoravam para dar uma resposta correta, fossem as afirmativas verdadeiras ou falsas, e até mesmo para responder às questões de opinião. Nós esperávamos que o tempo de resposta fosse maior nas questões de opinião, mas a diferença estava entre acertar e errar, um comportamento que se reflete nos tempos de resposta, mas que não é explicado com base no tipo de estímulo apresentado.


Um outro exemplo apareceu em um estudo com a Gitanna Brito Bezerra. Nós aplicamos a mais de 150 participantes um teste de plausibilidade de frases com sintagmas nominais complexos (N1-de-N2), ambiguamente candidatos à aposição da oração relativa, sendo dois os tipos de relação entre N1 e N2 (parentesco vs. funcional). Introduzimos uma questão adicional ao estudo e manipulamos também os itens distratores, transformando alguns deles em não plausíveis (p. ex., Em geral, os taxistas são velozes nas tardes de domingo vs. Em geral, os sabonetes são velozes nas tardes de domingo). Em cada lista havia um percentual de itens distratores não plausíveis (L1: 75%, L2: 50, L3: 25% e L4: 0%). Foi pedido aos participantes para indicar, em uma escala do tipo Likert de sete níveis, o grau no qual consideram que a situação descrita na frase era plausível ou realista. Entre os resultados, observamos que a distribuição das taxas de aceitabilidade nos itens experimentais diferia significativamente apenas em uma lista, naquela em que não havia itens experimentais não plausíveis (L4). Nesta Lista, as frases com SNs complexos do tipo funcional tendiam a ser significativamente mais bem aceitas, e com tempos para marcar a resposta significativamente mais baixos, comparados com as frases com SNs complexos do tipo parentesco.


Como a plataforma também regista outros parâmetros (se os participantes alteram suas respostas, quantas vezes o fazem, o tempo que levam para responder e para submeter as respostas), mais tarde voltamos a esses dados e fizemos novas análises com duas colegas da estatística, a Cecília Castro e a Ana Paula Amorim, aqui da Universidade do Minho. Os dados estão descritos em um breve artigo do ano passado. Desta vez, focalizamos nos casos em que os participantes mudavam suas respostas e examinamos se havia diferenças no padrão de comportamento exibido entre os casos em que os participantes alteravam suas respostas e os casos em que eles não alteravam suas respostas. Os resultados foram muito claros, claríssimos, ao mostrar que mudar a resposta tinha um impacto não apenas no tempo para responder (tomada de decisão sobre a resposta), mas no padrão de comportamento durante toda a tarefa. Ou seja, desde o tempo de leitura do estímulo até a submissão da resposta. Este foi um exemplo muito explícito de que podemos ganhar em termos interpretação dos dados se entendermos melhor e levarmos em conta nas análises comportamentos que podem não derivar do objeto de estudo, do desenho experimental, dos estímulos ou da tarefa solicitada ao participante.


Claro que há limitações para o desenvolvimento ótimo da proposta. A própria ferramenta não tem ainda todas as funcionalidades ideais para explorar essas atitudes e comportamentos. Seriam necessários mais recursos financeiros e uma abordagem mais sistemática no exame das questões que vão sendo levantandas. No momento a plataforma integra perguntas fechadas e medidas off-line, não permitindo estabelecer relações entre dados com outros tipos de tarefas, nem com as medidas on-line, por exemplo.


Muitos comportamentos não são hipotetizados à partida, mas observados após a implementação de um estudo, como nos exemplos que dei dos estudos com a Eloísa Pilati e a Carolina Castro e com a Gitanna Bezerra, a Cecília Castro e a Ana Paula Amorim. As análises estatísticas, aliás, também costumam dar mais trabalho porque são várias as medidas extraídas e a serem analisadas e correlacionadas. Os modelos mais usuais na área da Psicolinguística nem sempre são sensíveis ao tratamento estatístico a que estamos mais habituados e nesses casos é preciso recorrer a modelos mais avançados ou pouco comuns na área. Essa questão é discutida em um artigo recente que publicamos (Advanced mathematical approaches in psycholinguistic data analysis: A methodological insight). Neste artigo procuramos dar conta de alguns desafios relacionados com a análise dos dados da plataforma, reconhecendo que os estudos que usam técnicas off-line frequentemente produzem dados enviesados, com valores mínimo e máximo extremos e grande variabilidade individual e entre os participantes. Foram ensaiados diferentes modelos estatísticos na base dados do estudo de plausibilidade que eu e a Gitanna aplicamos. Outras observações também curiosas foram feitas. Por exemplo, quando comparados aos níveis intermediários da escala usada (2, 3, 4 e 5), os tempos para indicar as frases como totalmente plausíveis (7) eram acentuadamente menores, e para indicar como totalmente implausíveis eram acentuadamente maiores. Novamente, vemos aqui a tendência de um maior custo para responder negativamente do que para responder positivamente. Um comportamento semelhante ao que foi observado no estudo de Swets e colegas, no qual os participantes demoravam mais tempo para responder as questões em que a resposta correta era “não” (em vez de “sim”). Notável também foi a observação de que à medida que os tempos para responder mudavam, mudavam também os tempos para submeter as respostas, com uma correspondência alta e consistente entre essas duas medidas em todos os níveis da escala, exceto no nível 1. Talvez porque neste nível os tempos de resposta fossem muito inferiores aos tempos observados nos outros níveis.


Em suma, vejo como mais motivador nos dados da plataforma a possibilidade de reunir pistas que nos conduzam a um maior entendimento sobre atitudes e comportamentos que têm impacto nos dados off-line e que não parecem decorrer diretamente do objeto de estudo, dos estímulos, ou da tarefa solicitada aos participantes. Alcançar um maior entendimento sobre a natureza das pequenas hesitações que vemos nas respostas dos participantes é, no mínimo, estimulante.


Muito pouco disso tudo é estudado na pesquisa psicolinguística. Ainda que seja principalmente, e tradicionalmente, a Psicologia Social a explorar questões relacionadas a atitudes e comportamentos, há questões de interesse para a Psicolinguística que precisam ser exploradas no âmbito dos estudos psicolinguísticos, como algumas que mencionei. O fato de precisarmos estar muito focados em responder as questões de investigação (linguísticas) raramente nos permite dirigir a atenção para outros aspectos que podem influenciar as respostas e os tempos de resposta. Então, o que vemos na literatura são apenas algumas pistas, quando seria necessário uma exploração mais sistemática deste tema, na minha visão. Mas também noto alguma resistência entre os pesquisadores em admitir que “fatores extralinguísticos” que podem ter um impacto sobre os dados deveriam ser melhor entendidos porque são importantes também para refinar os nossos métodos, nossas análises e nossa interpretação sobre esses dados.


Eu sugiro que da próxima vez que preencher um questionário (qualquer um), se concentre nas questões e observe o sentimento subjetivo de confiança ou de hesitação enquanto responde. Deverá notar que esses sentimentos são muito breves e sutis, mas suficientes para serem refletidos nas respostas e nos tempos de resposta.


Quanto ao impacto da pandemia neste projeto, penso que as experiências que tive foram semelhantes àquelas sentidas pela maioria dos pesquisadores. A proposta foi idealizada entre 2017 e 2018 e colocada em prática em maio de 2019. Nos primeiros meses eu havia estabelecido várias parcerias com colegas, incluindo algumas durante uma visita ao LAPROL, na UFPB, por convite do Márcio Leitão e do José Ferrari. Também começava a elaborar um projeto para obter financiamento destinado a melhorias na proposta inicial. A pandemia provocou uma reviravolta em tudo isso e teve algumas repercusões negativas, não apenas nos meus trabalhos mas também nos trabalhos de outros pesquisadores, professores e estudantes. Algumas coisas se perderam no meio do caminho, com exceção do nosso entusiamo para seguir em frente, aceitar as perdas e dar atenção aos ganhos.


12. Como foi organizar um número específico da Revista H2D da Universidade do Minho, justamente no período da pandemia e com foco em relatos de experiências na educação vivenciadas nesse período?


Foi uma experiência muito enriquecedora e emocionante. Diria também que a proposta foi “acolhedora”. Era evidente que todos sofríamos com as repercursões da pandemia, especialmente nas fases iniciais quando a chamada de trabalhos foi aberta. Nossas vidas pessoais e profissionais foram atingidas. Professores e estudantes enfrentavam situações desafiadoras no desempenho de suas tarefas. Pretendíamos dar voz aos professores, recebendo testemunhos de experiências, menos preocupados com a formalidade dos artigos científicos naquele volume especial, intitulado apropriadamente como Novas práticas no ensino em tempos de pandemia: desafios e soluções em ambiente digital. Inauguramos também um formato de publicação audiovisual na seção “H2D Live”, que ainda hoje me encanta. Os editores e toda a equipe da Revista se acolheram, fomos acolhidos e acolhemos os autores. Uma experiência sem dúvida muito diferente.


A experiência também valeu para despertar em mim um interesse por políticas editoriais e por outras tarefas de gestão editorial. Ainda não conhecia este interesse, mas ele também ficou evidente quando editei com a Professoras Armanda Costa e Juliana Gomes o volume 36.2 em 2021 da Revista Diacrítica. Este interesse tem crescido bastante em uma das minhas atividades atuais, desde 2022 ̶ como editora-responsável da Diacrítica, com a minha colega Márcia Oliveira.


13. Mesmo em meio ao cenário pandêmico, você prosseguiu realizando as pesquisas? Que aprendizado, como pesquisadora, esse período da pandemia vai deixar?


Sim, eu continuei com as pesquisas. Lembro-me de ter uma sensação de resistência incial às notícias sobre a pandemia e estava focada na preparação de um projeto a ser submetido em abril de 2020. Quando “a ficha caiu” e me deparei com o cenário da pandemia, não foi fácil. Enquanto preparava a proposta da plataforma na web, jamais passou pela minha cabeça que muito das nossas pesquisas teria de ser feito, obrigatoriamente, através da web. Havia programado para o ano de 2020, a conclusão da fase dos testes técnicos da plataforma e início da fase dos testes com os usuários. Esta última fase foi mais difícil. Precisava de muitos participantes e, idealmente, parte deles deveria fazer os testes presencialmente, no laboratório. Havia uma sobrecarga de apresentações, reuniões, aulas e tudo o mais feito diante da tela do computador. Pedir para alguém seguir um link e completar um questionário era quase um ato de crueldade.


Acho que o principal aprendizado, como pesquisadora, foi tomar uma verdadeira consciência de que há vida para além da pesquisa. Podemos desacelerar quando necessário. Podemos canalizar energias para outros assuntos de interesse. Isto acaba por dar mais espaço à critividade, o que é essencial ao nosso (bom) desempenho também.


14. Que dicas ou que tipo de informação você poderia deixar para novos pesquisadores ou para alunos interessados na área da Psicolinguística Experimental?


Bem, esta é uma grande responsabilidade. O que eu poderia dizer com base nessa conversa que tivemos? Acho que, primeiro, para não se esquecerem do valor do entusiasmo, da curiosidade, do “querer fazer”, “do querer fazer para o outro, pelo outro” na pesquisa científica. Isto serve para qualquer área. Nós chegamos no mestrado e no doutorado com um propósito. É preciso reconhecer este propósito e manter a cabeça aberta. Nem sempre o que desenvolvemos em nossos trabalhos estará alinhado às expectativas iniciais, mas se não perdermos de vista “o propósito”, as coisas tendem a correr bem. Pode ser que este propósito não seja reconhecido de imediato e que passe por alguns ajustes no decorrer do percurso. Atenção que este propósito de que falo não é “Quero ter um diploma”, “Quero ser reconhecido”, “Quero ficar famoso”, “Quero ter um emprego melhor, ganhar mais”. Tudo isso pode até fazer parte (em menor escala, espero). O ponto forte é alguma coisa que queremos acrescentar, deixar para a coletividade. Qualquer avanço na pesquisa científica, por mais ínfimo que seja, tem (ou deveria ter) como fim favorecer a coletividade. Então, pensem bem em suas questões de pesquisa.


Agora, mais diretamente relacionado à área da Psicolinguística Experimental, as primeiras palavras que me vêm à cabeça são paciência, persistência, transparência. O trabalho experimental é árduo e idealmente deveria ser feito em equipe. Exige reflexão, troca de experiências com os pares e com colegas de outras áreas também, porque requer várias fases, incluindo a das análises estatísticas e da sua interpretação, por exemplo. Não vou entrar neste último campo, para não nos alongarmos mais. Só deixo uma lembrança: as estatísticas que geralmente usamos são inferenciais, o que implica saber ler entre as linhas e, para isso, é preciso ser, seriamente, um bom observador. Os testes estatísticos ajudam a extrair conclusões, mas essas conclusões se baseiam nos dados e os dados nem sempre são super claros, nem sempre validam o que havíamos hipotetizado, especialmente em áreas como a nossa em que tudo é muito complexo. Nem é preciso mencionar, mas vou mencionar assim mesmo, que o nosso interesse é a descoberta, seja ela qual for, incluindo aquela que, lá no fundo, não esperávamos.


Outro aspecto que me ocorre é a questão da integridade na pesquisa, da ética. Um pesquisador ou pesquisadora pode estar tão entusiasmado ou entusiasmada com o seu estudo experimental ou, por outro lado, em exaustão depois de tanto trabalho, que só consegue pensar em despachar o assunto. Não é assim, claro. Os dados são o que são na pesquisa experimental, não há volta a dar, e refletir sobre eles, repensar, levantar outras questões ainda sujeitas a mais exploração (que é o que acontece na maioria das vezes) mostrar o que “não deu certo” e suas possíveis causas, o que não ficou claro, o que podia ser melhorado para obter melhores resultados, tudo isso faz parte da agenda. E não é só escrever porque é uma boa prática, é mesmo sentir que é assim que tem que ser... e depois escrever.


Eu costumo bater nesta tecla da integridade e da ética, então vou contar um evento que ocorreu recentemente. Um aluno ou uma aluna, em um questionário anônimo de qualidade na docência, aqui da Universidade, apontou como um ponto fraco meu a “obsessão com a ética”. A “obsessão” reconheço e tento me controlar nas aulas. Sobre o ponto ser fraco, ainda estou pensando. Acho que não é, só preciso me controlar um pouco nas aulas sobre outros assuntos. Ainda assim vou deixar uma sugestão de leitura. Um livro que gostei de ler, do autor David Koepsell, chamado Scientific integrity and research ethics.


Só mais uma coisa. Eu mencionei antes em algum lugar que “há vida para além da pesquisa”. Isso me faz lembrar que essa vida tem muitos desafios, tem fases boas e outras nem tanto. Temos muitas outras atividades que decorrem ao mesmo tempo, pessoais e profissionais. Não temos “todo o tempo do mundo” para isso ou aquilo. Mas isso não significa tratar dos assuntos de maneira mais superficial. A quantidade de informação, sobre tudo, avoluma-se exponencialmente e o acesso a ela fica cada vez mais fácil. Isso é positivo. Mas pode ser perigoso se navergamos, sem freios, na onda do “publique ou pereça”. Para tudo é preciso um meio termo. Não vejo a área da Psicolinguística Experimental, como uma fábrica de fazer experimentos. Tenho a certeza que vocês também não. Mas às vezes paro para pensar nisso enquanto leio algumas publicações da área. Talvez o risco de atrasar a ciência com um sistema que sobrevalorize a quantidade de produção deva ser ponderado. Ainda que não precisemos mais viajar quilômetros para encontrar uma biblioteca que tenha uma fonte de pesquisa, é bem legal refletir criticamente sobre o que lemos, ter a preocupação de aprofundar a leitura, cruzar referências, testar e retestar nossas hipóteses e evitar a supercialidade nas publicações. Há uma frase no prefácio de um livro do Willem Levelt ̶ A history of Psycholinguistics: The pre-chomskyan era  ̶ que me ocorre muitas vezes em outros contextos diferentes do que é tratado neste livro: “There has been history before history.” Então, eu diria que também é legal reconhecer a contribuição dos trabalhos mais antigos (incluindo os que são encontrados apenas impressos, nas bibliotecas), ser curioso, verificar as informações em fontes confiáveis. Como se estivéssimos em uma viagem de trem que irá durar muitas horas e durante o percurso temos a sensação de “todo o tempo do mundo” para fazer os experimentos, interpretar bem os dados e rever a literatura com calma.


Penso que, em conjunto, esses pequenos pontos possam contribuir para evitar a superficialidade no discurso acadêmico, garantir a integridade na pesquisa e fazer a ciência avançar. Não é preciso concordar com todos. Mas espero que reflitam sobre eles e acrescentem outros.



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Agradecemos à professora Dra. Maria do Carmo Lourenço Gomes pela disponibilidade em responder nossas perguntas.

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