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Entrevista: Professora Dra. Maria Angélica Furtado Cunha (UFRN/UFPB)

Atualizado: 16 de abr. de 2020

1) Qual foi o fator determinante que o motivou a seguir os estudos da linguística na área do funcionalismo, pode nos contar um pouco da sua trajetória?


No meu curso de Mestrado em Linguística, na Universidade de Brasília, elegi a sintaxe como área prioritária de interesse. Trabalhei, nessa ocasião, com o modelo teórico gerativista, que abstrai as condições reais de uso da língua. No meu Doutorado em Linguística, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, travei contato, através dos professores Anthony Naro e Sebastião Votre, com o paradigma funcionalista contemporâneo que, de imediato, conquistou minha adesão. Desde o mestrado na UnB, vinha buscando uma alternativa de análise da língua que levasse em conta a interferência dos fatores extralinguísticos na constituição da estrutura linguística. A investigação centrada na organização interna da língua me parecia limitadora e parcial. Entendia que o papel comunicativo – e, portanto, a função – a que se prestam as formas linguísticas deveria ter uma atuação destacada na codificação dessas formas. Sentia a necessidade de tentar correlacionar, de alguma maneira, forma e função, expressão e conteúdo. Daí a adoção do Funcionalismo.


2) De que forma a teoria funcionalista é aplicada em sua pesquisa nos dias de hoje?


O aparato teórico-metodológico funcionalista é aplicado em minhas pesquisas não só por meio do emprego das categorias analíticas que caracterizam esse paradigma na interpretação de fenômenos do PB, mas, sobretudo, por basear minha análises em dados autênticos da língua em uso em diferentes contextos comunicativos.


3) Com base na proposta funcionalista, em que a língua desempenha funções externas ao sistema linguístico, e que essas funções influenciam a organização interna desse sistema, como a teoria funcionalista poderia ser explorada no ensino de língua portuguesa?


O grupo de estudos que coordeno na UFRN – Grupo Discurso & Gramática – tem desenvolvido diversas pesquisas, sob a perspectiva funcionalista, que se ocupam de questões relativas ao ensino de língua materna. Essa tendência reflete-se em propostas de aplicação de resultados das reflexões teóricas empreendidas em contextos de sala de aula. Nossa contribuição visa a formação do professor responsável pelas aulas, fornecendo o conhecimento que fundamentará suas explicações, orientará a preparação de seus programas de ensino e de seus materiais didáticos. Nossos estudos estão diretamente relacionados a uma preocupação com questões ligadas a aplicações práticas, como se pode ver em algumas das publicações do D&G.


4) Pode-se afirmar que o funcionalismo se caracteriza por uma concepção dinâmica do funcionamento das línguas, em que a gramática é vista como um organismo maleável, que se adapta às necessidades comunicativas e cognitivas dos falantes. Tendo em mente o conceito de gramaticalização, como se dão os estudos dessa vertente na sua área de atuação? E como ela explicaria, por exemplo, a mudança ortográfica de uma determinada língua, há alguma relação?


O paradigma de gramaticalização, que prevê a mudança de um item lexical em um elemento gramatical ou de uma estratégia discursiva em uma estrutura sintática, decorre da compreensão funcionalista de gramática como mecanismo mutável e instável, moldado pelo uso, pois sujeito a pressões comunicativas e cognitivas. A gramaticalização, como um paradigma retomado e desenvolvido no quadro da Linguística Funcional Clássica, está associado aos fenômenos de variação e mudança linguísticas. Nesse sentido, procuramos flagrar motivações relacionadas ao plano do conteúdo (de natureza discursivo-pragmática e semântico-cognitiva) e ao plano da forma (de caráter morfossintático e fonológico). No plano do conteúdo, fatores discursivo-pragmáticos e semântico-cognitivos funcionam como gatilho para a emergência de padrões gramaticais, de modo a satisfazer demandas comunicativas. No plano da forma, situam-se os processos de mudança relacional entre os signos e o consequente remodelamento da construção na qual eles interagem. Nessa linha, a mudança ortográfica, que leva em consideração apenas aspectos formais, está fora do escopo dos estudos funcionalistas que desenvolvemos.


5) O funcionalismo demonstra interesse em trabalhar a linguagem como instrumento de interação social, analisando a relação entre linguagem e sociedade. Enquanto isso, o chamado “sociocognitivismo” (da linguística cognitiva), enfatiza a importância do contexto nos processos de significação e o aspecto social da cognição humana, focalizando a linguagem como uma forma de ação. Considerando as duas teorias, que tipos de relações/interfaces existem entre a linguística funcionalista e a cognitiva, no que diz respeito a como o sistema linguístico revela o funcionamento da mente humana e como isso se reflete na experiência com o mundo?


A Linguística Funcional Centrada no Uso, modelo teórico adotado pelos pesquisadores do D&G (UFRN, UFRJ e UFF), compartilha com a Linguística Cognitiva vários pressupostos teórico-metodológicos, como a rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às análises, a não distinção estrita entre léxico e gramática, a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação, o entendimento de que os dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no discurso natural, só para citar alguns. Assim, nesses dois modelos, a gramática é vista como representação cognitiva da experiência dos indivíduos com a língua; portanto, ela pode ser afetada pelo uso linguístico. Assumimos, então, que a categorização conceptual e a categorização linguística são análogas, ou seja, o conhecimento do mundo e o conhecimento linguístico seguem, essencialmente, os mesmos padrões.


6) O estudo da marcação no funcionalismo tem como ideia-chave “o contraste entre dois elementos de uma dada categoria linguística, seja ela fonológica, morfológica ou sintática. Um entre dois elementos que se opõe é considerado marcado quando exibe uma propriedade ausente no outro membro, considerado não-marcado.” (Martelotta, 2008). Levando em conta essa teoria, e o fato de que as formas não-marcadas tendem a ser mais corriqueiras no exercício da fala, como a diferenciação dessas formas ajuda no exercício do ensino? E qual delas se torna mais expressiva em um contexto formal?


O conceito de marcação corresponde a um refinamento da noção saussureana de valor linguístico nas distinções binárias entre um par contrastivo. Estudos empreendidos por pesquisadores do D&G ratificam a necessidade de se adotarem parâmetros de gradualidade na análise da marcação, sob o risco de tomarmos as categorias linguísticas em termos discretos (ou binários), dado o caráter fluido e criativo da língua. Determinados fenômenos apontam a inadequação da binariedade, uma vez que não se prestam a uma análise dicotômica. Assim, é preferível ver a marcação numa perspectiva escalar. Por exemplo, uma mesma estrutura pode ser marcada num contexto e não-marcada em outro, como a oração passiva. Vista assim, a marcação é um fenômeno dependente do contexto, devendo, portanto, ser explicada com base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos. Além disso, a marcação não se limita às categorias linguísticas, podendo estender-se a outros fenômenos, tais como a distinção entre o discurso formal e a conversação espontânea. Por tratar de assuntos mais abstratos e complexos, o discurso formal é mais marcado em relação à conversação, que é cognitivamente processada com mais rapidez e facilidade, uma vez que trata de assuntos comuns e do cotidiano social. Considerando que as formas menos marcadas são, por definição, mais frequentes na fala informal, a comparação e o contraste entre formas marcadas e não marcadas pode auxiliar o professor a trabalhar a distinção entre registros e gêneros, por exemplo.

7) Sobre a Iconicidade no estudo do funcionalismo, mais precisamente sobre o subprincípio da quantidade, em que quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma, ou seja, que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão (Slobin, 1980), é possível associar o cerne dessa teoria à realidade das salas de aula, em que professores, quando muito complexos na transmissão da teoria, não obtém bons resultados, enquanto que os mais focados em associações simples e práticas tem uma experiência de ensino mais efetiva?


Embora o princípio de iconicidade, até onde sei, não tenha sido pensado em termos da atuação do professor em de sala de aula, nada impede que essa extensão possa ser feita. De fato, a eficácia do ensino – que podemos associar à função – está diretamente relacionada ao modo como os conceitos são transmitidos – ligado à forma. O professor pode e deve adaptar o conteúdo que vai ser ensinado ao nível de letramento dos alunos, facilitando o processo de aprendizagem sem, contudo, banalizá-lo.


8) O funcionalismo compreende a língua no seu uso social, focando a interação por meio da linguagem. Como você (e a área de estudos) se posiciona quanto ao certo e o errado dentro do ensino da língua portuguesa?


No que diz respeito ao ensino de língua portuguesa nos níveis fundamental e médio o preconceito com a modalidade oral da língua continua evidente, a despeito de um número cada vez mais representativo de trabalhos que a linguística hoje desenvolve nessa área. Contudo, a prática de ensino do português parece continuar alheia a essa questão. Nas salas de aula, a oralidade continua recebendo um status inferior, continua sendo considerada o espaço privilegiado dos “erros” e “defeitos” da língua, de modo que muitos dos desvios na escrita são analisados como transferências indevidas da fala. Entendemos que o ensino gramatical não pode ser centrado exclusivamente na variedade escrita padrão, que prioriza apenas um subconjunto de fatos, em detrimento das demais variedades. Ao contrário, é preciso expor o aluno a um conhecimento mais diversificado da realidade linguística brasileira, ajustando o ensino de português a essa realidade. Logo, embora sobrepostos, esses sistemas devem ser analisados separadamente, embora comparativamente, sempre que possível. Cabe à escola desenvolver atividades que, contemplando a variação linguística observada em textos reais, falados e escritos, levem o aluno a perceber a adequação de determinados empregos em determinadas situações, ou seja, a língua em uso.


9) O que você vislumbra, em termos de pesquisa, na área do funcionalismo para os próximos anos? Que novidades podemos esperar nesse campo da linguística?


Considerando o vínculo mais recente entre a Linguística Funcional Centrada no Uso e a Linguística Cognitiva, em especial a Gramática de Construções, podemos destacar a adoção, por parte de funcionalistas, de algumas ferramentas de análise desses dois modelos. A interação com a Linguística Cognitiva resultou em uma nova direção nas pesquisas sobre a variação e a mudança linguísticas, por exemplo, que anteriormente eram tratadas sob o prisma da gramaticalização. No cenário atual, trabalhamos com os conceitos de construcionalização e de mudança construcional, estabelecidos no âmbito da Gramática de Construções. Um campo de pesquisa ainda em aberto diz respeito à investigação da relação entre processos cognitivos de domínio geral e temas como variação, mudança, aquisição da linguagem, entre outros. Tomando a construção como a unidade básica da língua em qualquer nível, conforme proposta da Gramática de Construções, cabe investigar, por exemplo, os mecanismos responsáveis pela formação e mudança das construções, examinando a atuação de fatores cognitivos, socioculturais e estruturais.


10) No livro Funcionalismo e ensino de gramática, você é autora do capítulo sobre a gramaticalização do verbo ir e o ensino, poderia, em síntese, nos mostrar como estudos como este pode contribuir para o ensino?


Conforme é dito nesse capítulo, a pesquisa sobre a gramaticalização do verbo ir tem, como umas das suas propostas, fornecer subsídios para uma nova postura a ser adotada em sala de aula, com base nos resultados obtidos na pesquisa. Nossa intenção é contribuir para a formação de professores de português, propondo uma orientação didática e pedagógica que leve em conta o uso real da língua. A ideia que nos norteia é vincular tendências de variação e mudança com um ensino que envolva o que está de fato ocorrendo na comunicação cotidiana. Não visamos diretamente a aplicação pedagógica, mas buscamos revelar um quadro de variação e mudança que pode e deve subsidiar a prática de ensino de português. Nessa direção, nossos trabalhos podem trazer contribuições que auxiliem a viabilizar um ensino de língua materna menos autoritário, que contemple a variabilidade linguística, a criatividade do usuário da língua e a mutabilidade relativa da fala. Em suma, que despertem, tanto nos alunos quanto nos professores, reflexões sobre a língua em uso e sua aparente estabilidade.


11) Na mesma linha, como o estudo sobre a complexidade das passivas em uma perspectiva funcionalista contribui para a compreensão sobre o uso da estrutura passiva e quais implicações pedagógicas essa compreensão traz?


Essa pergunta poderia ser respondida da mesma forma que a anterior. O que nos guia, na interface Linguística Funcional e ensino de língua, é a tentativa de viabilizar um ensino mais eficiente, mais próximo da língua que utilizamos no dia a dia. Para atingir esse objetivo mais aplicado, a trajetória que sugerimos para o ensino de português é partir do uso ou conhecimento linguístico que o aluno já domina – a conversação – para atingir o chamado uso culto ou dialeto padrão, através de uma abordagem funcionalista da língua, considerando, porém, que nenhum dos usos linguísticos é melhor do que outro; possuem, apenas, finalidades distintas. A fala produzida em situações de interação pode servir como ponto de partida para uma consideração sobre os mecanismos produtivos de codificação de sentido, já que a conversação é o uso básico da língua, cujo status especial justifica tratá-la como a origem de todos os outros usos, como afirma Chafe (1994). No caso específico da passiva, um tipo oracional marcado em oposição à ativa, com a qual compartilha o significado proposicional, o professor, além de fazer a correlação estrutural entre as duas orações, pode mostrar que o maior grau de marcação da passiva está diretamente relacionado aos tipos textuais e gêneros em que sua ocorrência é favorecida.


12) A teoria funcionalista surgiu em contraposição à teoria gerativa, no entanto, você acha que hoje em dia, podemos dizer que houve um amadurecimento acadêmico e que podem ser tomadas como complementares em muitos pontos e que ambas trazem contribuição relevante para os estudos da linguagem, ou continuam sendo mutuamente excludentes, qual a sua opinião sobre essa reflexão?


Como dizia Halliday (1985), uma teoria é um óculos que usamos para ver determinados objetos. Nesse sentido, não há uma teoria melhor do que a outra, visto que cada uma elege um objeto de estudo próprio, procedendo a recortes. Seguindo essa argumentação, as teorias se complementam já que a língua, como destacou Saussure, é multifacetada e, portanto, impossível de ser descrita, em sua totalidade, por um único paradigma teórico. Mais recentemente, constatamos a conjugação de abordagens linguísticas distintas que, embora tenham objetivos específicos, compartilham pressupostos básicos. Podemos citar, como ilustração, o Sociocognitivismo, a Linguística Cognitivo-Funcional, o Sociofuncionalismo, entre outras. Com relação à teoria gerativa, não vejo com muita clareza esse compartilhamento de visão de linguagem/língua, daí a maior dificuldade de aproximação com modelos funcionalistas. Cabe ressaltar, contudo, que tanto o funcionalismo, em sentido amplo, como o gerativismo adotam o paradigma da gramaticalização no estudo da mudança linguística, a exemplo de Vitral e Ramos (2006), o que reflete uma certa aproximação.

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Agradecemos à professora Drª. Maria Angélica pela disponibilidade em responder nossas perguntas.

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