Entrevista publicada no Volume 10 nº 2 (2021) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP (<https://ojs.letras.up.pt/index.php/elingUP/article/view/11384/10435>).
A Professora Fátima Oliveira é semanticista e Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mudou-se para a Universidade do Porto em 1976, onde trabalha desde então.
Em 1988, conclui a sua tese de doutoramento, intitulada Para uma semântica e pragmática de dever e poder, orientada pelos Professores Herman Parret e Óscar Lopes.
Ao longo da sua carreira, a Professora Fátima Oliveira tem-se dedicado ao estudo da Semântica da Língua Portuguesa, focando a sua atenção em temas como o Tempo e o Aspeto, a Quantificação e a Modalidade em Português Europeu. Enquadrada na Semântica Formal, desenvolveu também estudos sobre temas na interface Sintaxe-Semântica, assim como na relação entre Semântica e Pragmática e, pontualmente, Semântica e Fonologia, considerando, nalguns casos, diferentes variedades do Português. Além disso, a Professora interessa-se também pela aplicação da Semântica no âmbito da Inteligência Artificial e no estudo/ensino do Português como Língua Não Materna.
A Professora Fátima Oliveira lecionou várias disciplinas e seminários na área da Linguística e proferiu diversas palestras em congressos em Portugal e no estrangeiro. É autora de vários artigos e outros trabalhos, nomeadamente alguns capítulos da Gramática da Língua Portuguesa, da editora Caminho, bem como da Gramática do Português, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Por ocasião da sua jubilação, a revista elingUP entrevistou a Professora Fátima Oliveira, de forma a celebrar esse momento, bem como a homenagear todo o trabalho da Professora, debruçado sobre a Linguística e a Língua Portuguesa durante longas décadas.
Contrariamente ao que aconteceu nas últimas entrevistas da revista elingUP, uma melhoria na situação de emergência sanitária atual e uma diminuição das restrições relativas ao contacto social permitiram a realização de uma entrevista presencial à Professora Fátima Oliveira. Assim, o guião para a entrevista foi preparado pelos estudantes Ana Cunha, Beatriz Martins, Joel Santiago, Mariana Silva, Renata Rodrigues, Rui Lopes e Violeta Magalhães e a entrevista foi conduzida presencialmente no dia 21 de setembro de 2021 pelos estudantes Ana Cunha, Mariana Silva, Rui Lopes e Violeta Magalhães na sala de leitura do Centro de Linguística da Universidade do Porto.
Nesta entrevista, iremos percorrer vários tópicos e momentos da carreira da Professora Fátima Oliveira, focando diversos temas por si estudados ao longo dos anos, numa conversa que se revelou muito prazerosa para os estudantes presentes e que, esperamos, possa constituir uma deleitosa experiência para os restantes leitores.
Gostaríamos de começar pelo início da sua carreira no ensino universitário. Quais foram as razões da escolha pela Linguística? Enquanto estudantes, é frequente enfrentarmos algumas indecisões na hora de escolhermos qual a área que decidimos aprofundar, nomeadamente no final da licenciatura. A Senhora Professora soube sempre ser a Semântica a área que queria trabalhar ou passou por um período de indecisão?
Muito obrigada pela pergunta. Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar todos vocês e agradecer estarem aqui e o trabalho que fizeram para juntar todas estas perguntas que eu acho que são, em geral, muito interessantes e estimulantes. Em relação à pergunta que me faz, eu fiz a licenciatura em Lisboa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Uma licenciatura, naquele tempo, de cinco anos. Ao fim de três anos, tínhamos o bacharelato, mas a licenciatura só se obtinha ao fim de cinco anos. O curso chamava-se Filologia Românica e, na verdade, quando fui para a faculdade, não sabia o que era Linguística.
Acontece que, no segundo ano do curso, tive uma professora, a Professora Maria Helena Mateus, que, como vocês sabem, é fundamentalmente da área da Fonologia, mas que, nessa altura, nos dava Linguística Portuguesa I. Nessa cadeira, a Professora Maria Helena Mateus começou com determinado programa e depois, a certa altura, perguntou-nos se nós estávamos interessados em ter um outro programa com questões novas, relacionadas com a Linguística Distribucional e Generativa, que ela trouxe para Portugal e, sobretudo, para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A Professora dividiu o programa entre os que queriam o programa tradicional e outros que queriam o programa novo. Eu alinhei por este último e realmente, para mim, foi um mundo novo. Portanto, devo-lhe a ela ter escolhido Linguística, uma escolha que ficou para sempre, porque realmente me entusiasmou e me abriu horizontes a coisas muito diferentes e novas. Quanto a eu achar que queria fazer Semântica, quando era estudante de licenciatura não havia Semântica na universidade. Eu nunca tive aulas de Semântica como vocês agora têm e, portanto, o que me faz escolher Semântica é a vinda para o Porto. O que eu tive na licenciatura, o que fiz e o que mais me entusiasmou, na altura, foi Sintaxe.
No entanto, no último ano da licenciatura, tínhamos uma cadeira que era um tipo de seminário e que podia ser feita em Linguística ou em Estudos Literários. Cada um escolhia o que queria fazer, havia várias possibilidades, e eu escolhi Linguística. Estranhamente, fiz um trabalho, que não podia imaginar que iria ser tão importante para a minha carreira futura, que foi sobre Aspeto (risos). O Aspeto era um assunto completamente novo e diferente na altura, ninguém falava daquilo. Contudo, quando venho para o Porto, atravessava-se uma fase de questionamento da Gramática Generativa e, durante um tempo, fiz Análise do Discurso com teorias francesas da altura.
Depois, é em conversas com o Professor Óscar Lopes, que aliás eu tinha conhecido pessoalmente em 1973, que a Semântica se vai impondo como a minha área de eleição, porque permite colocar certas questões muito interessantes. Já agora, eu conheci o Professor Óscar Lopes em 1973, ano em que estava a terminar a licenciatura e, juntamente com alguns colegas da Linguística (Ana Maria Brito, Inês Duarte, Isabel Faria, Gabriela Matos e Eduardo Paiva Raposo), fiz uma viagem de fim de curso que envolvia um grande congresso em Cambridge, organizado por Edward Keenan, um grande semanticista americano. O professor Óscar Lopes, que nem sempre, por razões políticas, podia sair do país, naquela altura ia também a esse congresso. Portanto, eu literalmente conheci-o no aeroporto, no avião. O congresso foi muito interessante porque nós estávamos a acabar a licenciatura, com poucas cadeiras de Linguística, sem nunca ter ouvido falar de Semântica. Nesse congresso, estavam figuras muito relevantes na área, como, entre muitos outros, J. Lyons, D. Lewis, B.
H. Partee e H. Kamp. Assistíamos às comunicações e depois, quando saíamos, ou nos intervalos, o Professor Óscar Lopes explicava-nos tudo o que tinha sido dito, colocava dúvidas, questões e problemas. Eu ainda tenho bem presente, porque a Universidade de Cambridge não ficava no centro, aqueles caminhos que nós percorríamos a pé, em que ele vinha conversando, explicando e, como isso acontecia ao fim do dia, havia aquela luz dourada que tornava aqueles momentos quase mágicos.
Esses momentos, de alguma maneira, sem eu perceber, foram estimulando o meu interesse pelos problemas de Semântica. Além disso, o Professor Óscar Lopes foi extremamente determinante para a minha geração porque era uma pessoa que, não tendo feito uma carreira universitária, pelos menos até ter entrado na universidade depois do 25 de Abril, porque antes não entrava por razões políticas, apresentava-se para nós como aquele que estudava formalmente as línguas. Lembro-me que o Eduardo Paiva Raposo, no primeiro livro que escreveu de introdução a questões de Sintaxe, agradeceu ao professor Óscar Lopes, não porque ele fizesse Sintaxe, mas por causa dessa importância que ele dava à formalização e, de facto, ele foi pioneiro em muitas coisas. Portanto, a minha escolha da Semântica é já no Porto, porque antes pouco sabia que havia Semântica.
Ao longo da carreira da Professora, foram inúmeras as contribuições que fez para a área dos estudos semânticos do Português. Qual seria a contribuição de que mais se orgulha?
Obrigada pela pergunta, mas não é fácil responder, não porque haja muitas coisas de que me orgulho, mas porque em Ciência a gente não se pode orgulhar de nada do que faz. Fazemos pequenas contribuições e, se conseguirmos fazer com que essas pequenas contribuições venham a ser importantes, isso quer dizer que estamos num bom caminho. Tudo o que for pequeno contributo é importante.
Os grandes contributos são para alguns e também não surgem, em geral, sozinhos, fazem parte de equipas. No fundo, na investigação, o que acontece é que, de vez em quando, com o contributo do trabalho de vários, chega o momento em que é possível fazer uma proposta inovadora, mas isso é sempre o resultado de muitas investigações, conduzidas por muita gente. Portanto, eu não posso dizer que me orgulho realmente. Fiz algumas pequenas contribuições que talvez continuem vivas, até porque a investigação é assim, nem tudo o que se sabe agora vai ser importante no futuro.
Agora, posso dizer é que, não tanto como contribuição, mas acho que trouxe para o Porto, ou para aqui, para a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o estudo semântico do Tempo e do Aspeto, que não se fazia inicialmente. Foi possível constituir um grupo de trabalho que até hoje continua entusiasmado por essas questões. E eu também continuo muito entusiasmada, como veem, desde 1973! (risos) Portanto, estudei algumas coisas, trago umas pequeninas contribuições...
O estudo do Tempo, do Aspeto e da Modalidade e das questões de Quantificação em Português Europeu têm ocupado um papel central na investigação da Senhora Professora. Curiosamente, esses são temas transversais aos estudos sobre várias línguas, muitas vezes com descrições e caraterísticas muito distintas. Nesse sentido, serão esses os grandes temas da Semântica?
Tudo está aí nesse artigozinho, os grandes temas (risos). São grandes temas da Semântica, incontornáveis. A Quantificação e a Modalidade são estudadas pelo menos desde Aristóteles, quando nem havia Semântica. Aliás, a Semântica é uma área que se desenvolve no século XX. Contudo, o problema da Quantificação, dos quantificadores universal e existencial, a articulação desses quantificadores com a negação – o que mais tarde vem a ser estipulado como o quadrado de Aristóteles – isso vem tudo de Aristóteles. Quanto à Modalidade, acontece a mesma coisa. Aristóteles elabora uma grande discussão sobre o possível e o necessário e também tem algumas coisas, não tanto sobre Tempo, mas sobre Aspeto. Por exemplo, tem a noção do que é dinâmico e não dinâmico e fala um pouco disso. Portanto, essas são questões que começam a ser abordadas há bem mais de 2000 anos.
Depois, quero também dizer que, para além destes, há outros grandes temas da Semântica, mas para já vou explicar porque é que estes são grandes temas. A Quantificação é, se calhar, o tema de eleição da Semântica Formal, que se constitui mais ou menos ao mesmo tempo que a Gramática Generativa – final dos anos 50, princípio dos anos 60 –, exatamente por permitir aplicar esse estudo formal nas línguas. A Semântica Formal constitui-se na base de estudos de muitos filósofos e lógicos que se preocupam com problemas como a significação das expressões e das descrições definidas, as questões da referência, entre outros. Contudo, é só no final do século XIX, com Gottlob Frege, que esses problemas são formalizados. Frege inventa a lógica de predicados e com isso é possível estudar uma coisa que até essa altura não era possível: o encaixe de quantificadores em frases que tenham mais do que um quantificador.
Gottlob Frege foi importantíssimo para a Semântica Formal e para os problemas da Quantificação. É também ele que fala, não lhe chamando assim, do Princípio da Composicionalidade – esse princípio de que hoje algumas pessoas falam vagamente, mas que é uma coisa séria, havendo inclusive vários tipos de composicionalidade – que de tal maneira foi importante que, às vezes, em certa literatura, lhe chamam “O Princípio de Frege”. Tudo isso permitiu estudar quantificadores que hoje nós podemos, com uma certa margem de certeza, dizer que são universais ou existenciais. Porém, as línguas têm outros quantificadores, que, sobretudo, não são universais, o que significa que, a partir de certa altura, houve muitos [mais] estudos sobre a quantificação e os quantificadores continuam ainda hoje em dia a ser estudados.
É um tema realmente muitíssimo importante na Semântica porque, se pensarmos bem, tem a ver com algo que é muito importante e que as línguas, ainda que com muita variabilidade entre si, têm: a forma de contagem. Contar ou não contar, embora a distinção contável e não contável não seja universal nas línguas. Para contar, podemos ter muitas palavras diversas, desde os numerais, que todas as línguas parece que têm, até outras formas com mais ou menos restrições. O PE e o PB, por exemplo, são duas variedades do português que apresentam algumas diferenças na quantificação e isso é extremamente estimulante. Neste momento, quando eu estou aqui a falar de quantificação, e durante muito tempo no passado, a quantificação está a ser abordada no sentido de quantificação nominal. Nesse enquadramento, foram desenvolvidos vários modelos e teorias de quantificadores generalizados, como a proposta de Richard Montague, que é outro fundador da Semântica Formal. No entanto, a quantificação pode ser também adjetival ou mesmo verbal e isso agora está a estender, está a alargar o âmbito do estudo da Quantificação.
A Modalidade, como eu já disse, é também uma questão que vem desde Aristóteles, nomeadamente com o estudo do possível e do necessário, que dá origem a muitos estudos em diferentes escolas filosóficas ao longo do tempo. Porém, é também só no século XX que surgem as primeiras lógicas modais. No princípio do século XX, C. I. Lewis desenvolve cinco modelos de lógica modal, ainda que esses modelos sejam ainda uma lógica não interpretada. É em meados do século XX que Jaakko Hintikka e Saul Kripke desenvolvem a semântica dessas lógicas modais – autores que eu tive de ler e estudar muito, dado que fiz uma tese de doutoramento sobre verbos modais. Depois, em meados do século XX, há um outro nome muito importante, que é Georg Henrik von Wright, que era originalmente jurista, que desenvolve um sistema formal para a lógica deôntica, que também tive de estudar no âmbito do doutoramento.
O estudo do Aspeto não é tão antigo, embora eu tenha dito que Aristóteles menciona um pouco a diferença entre o que é dinâmico e não dinâmico. Contudo, é já no século XIX, quando se abre o caminho para o estudo, em especial comparado, de muitas línguas do mundo, que esse tema começa verdadeiramente a ter importância no estudo linguístico. É a descoberta das línguas eslavas que chama a atenção para a questão do Aspeto, porque essas línguas marcam formalmente o Aspeto. No entanto, só no século XX se iniciam verdadeiramente os primeiros estudos sobre o Aspeto em línguas que não o marcam formalmente porque, quanto às línguas que o marcam formalmente, até as gramáticas tradicionais dão conta disso através dos famosos verbos perfetivos e imperfetivos, que são assim um melting pot, são muitas coisas variadas, até porque o Aspeto também é diferente de língua para língua.
O Tempo foi sempre um tema importante do ponto de vista linguístico, sobretudo se olharmos para línguas que o marcam formalmente. Estou a dizer isto porque há línguas que não marcam o Tempo como, por exemplo, o Mandarim e o Cantonês. Nessas línguas, os verbos não têm marcação temporal e a única coisa que pode marcar Tempo formalmente são advérbios de tempo. No entanto, como acontece com as línguas eslavas, essas línguas marcam muito fortemente o Aspeto e há alguns tipos de aspeto que podem dar uma indicação de Tempo. O Tempo torna-se também muito importante para os linguistas a partir do momento em que se descobre o trabalho de Hans Reichenbach de 1947. Trata-se de um livro enorme, chamado Elements of Symbolic Logic, e ali, em 10 ou 12 páginas, o autor arruma a questão do Tempo de tal maneira que nunca mais ninguém pôde falar de Tempo em Linguística sem o mencionar. Esse é que é um caso para se orgulhar (risos), mas, se calhar, para ele isso também era uma reflexão entre outras.
Aliás, eu lembro-me do Zeno Vendler, que é também incontornável, ter sido entrevistado pelo Henk J. Verkuyl e dizer mais ou menos assim: eu nunca pensei que aquele artigo que eu escrevi (Verbs and Times) viesse a ser tão importante (risos). Quer dizer, ele nem dizia “tão importante”, dizia “tão mencionado por toda a gente”! Tempo, Aspeto, Modalidade, Quantificação, mas eu prometi também que ia falar de outros temas que eu acho que são muito importantes para a Semântica. Um deles é a Negação, em que eu verdadeiramente nunca toquei senão quando estudei Modalidade, mas que acho que é um tema muito importante e muito complexo. A Negação envolve, basicamente, desde morfemas a palavras, frases, e mesmo a posição na frase e, portanto, é extremamente complicada. Há um livro muito importante, de 1989, escrito por Laurence R. Horn que se chama The Natural History of Negation. É antigo, agora há trabalhos mais recentes, mas ainda muito relevante.
Depois, há muitos outros temas que entram aqui. Por exemplo, quando nós falamos de implicação estrita (ou lógica) em Semântica – ou entailment –, isso está profundamente ligado a muitas coisas que fazem parte do nosso conhecimento e que nós podemos estruturar de forma diferente. Por exemplo, se eu disser uma frase tão simples como “O João comprou um livro” – e estou a dizer “um livro” para não criar já complicações com “o livro”, porque dizer “um livro” ou dizer “o livro” são coisas diferentes – há aqui uma série de entailments porque, ao enunciar a frase, eu estou simultaneamente a dizer o seguinte: alguém comprou um livro, o João fez alguma coisa com um livro, o João comprou alguma coisa, etc.
Tudo isto são implicações lógicas e em função de todas elas eu posso fazer uma estruturação da informação diferente. Por exemplo, quando se está a falar com alguém, se se disser “O João comprou um livro” está a dar-se tudo isto como informação nova. Mas se dissermos, com proeminência prosódica, “O João comprou UM LIVRO” estamos a dizer que achamos que o interlocutor sabe tudo menos o que o João comprou e é isso que é informação nova. Também podemos usar uma estrutura sintática clivada: “Foi um livro que o João comprou”. No fundo, as implicações lógicas estão lá todas na base daquela frase tão simples. A gente diz sempre muito mais do que parece que está a dizer.
Alguns destes tópicos de que nos falou agora, nomeadamente o Tempo, são também objeto de análise de outras disciplinas da Linguística, como a Sintaxe. Considera que estes estudos devem ou têm de ser independentes ou que há vantagens em abordagens interdisciplinares?
Para responder rapidamente, eu acho que não devem ser independentes, mas agora tenho de explicar porquê. Em primeiro lugar, do ponto de vista semântico, o Tempo não é, em geral, uma questão de Semântica Lexical. Trata-se, normalmente, de algo que é marcado na frase. Portanto, ao dizer que é marcado na frase isso já significa que, com certeza, a Sintaxe é importante. Contudo, levou algum tempo à Sintaxe para incorporar questões como Tempo e Aspeto nas suas estruturas sintáticas e, mesmo assim, é sempre a visão sintática do Tempo e do Aspeto.
No entanto, já trabalhei em projetos e escrevi artigos com pessoas de Sintaxe e isso revela que, seja o Tempo ou outros assuntos relacionados, há muitas questões linguísticas que podem ser tratadas em conjunto e beneficiam desse tratamento. O que é verdadeiramente importante é tentar perceber se há homomorfismo entre a Sintaxe e a Semântica no tratamento de determinado tema. Às vezes há e, quando isso acontece, é uma felicidade. Eu já trabalhei alguns assuntos em que é possível ver que a Sintaxe e a Semântica encaixam perfeitamente, embora trazendo contributos de um lado e do outro.
Lembro-me de um trabalho que eu e o Luís Filipe Cunha fizemos com a Anabela Gonçalves sobre os verbos de operação aspetual. No fundo, conseguimos que as duas descrições, a parte semântica e a parte sintática, encaixassem, pelo menos naqueles verbos de operação aspetual que nós estudámos. O grupo de Semântica também trabalhou com colegas de Sintaxe num projeto dirigido por Inês Duarte sobre predicados complexos e a articulação das duas áreas trouxe uma visão mais aprofundada, pelo menos dos predicados que estudámos.
Outro projeto em que trabalhei envolvia Sintaxe, Semântica e Fonética no estudo de um corpus oral. A diretora do projeto até era de Fonética. Voltando à questão, acho que sim, para o Tempo, a abordagem interdisciplinar tem vantagens, sobretudo para o estudo de frases complexas ou fragmentos textuais. Por outro lado, eu diria que também é possível e necessária a colaboração com a Pragmática, entre outras áreas. No entanto, como a pergunta é sobre a Sintaxe, gostaria de dizer o seguinte: quando o trabalho decorre nessa interface Semântica-Sintaxe, trabalho sempre com pessoas da área. Nunca faço eu a Sintaxe. Hoje em dia, há semanticistas que têm um percurso ou estudam também um pouco de Sintaxe. No entanto, em questões em que eu preciso, ou a Sintaxe precisa da Semântica, temos pessoas das duas áreas a trabalhar em conjunto. Já saber Semântica ou saber Sintaxe é tão complicado, e nós temos de ser rigorosos, precisos e não falar do que não sabemos. Em investigação, o “pouco mais ou menos” não chega. O “pouco mais ou menos” serve para as nossas conversas de quotidiano. É uma coisa absolutamente extraordinária, porque cada vez que nós falamos há sempre muita imprecisão.
Há sempre imprecisão, vaguidade, ambiguidade. Bem, é uma coisa impressionante, porque, quando se diz – e isto é um assunto que está agora a aflorar nos estudos semânticos – “O gato está no telhado”, que é uma versão da frase clássica “The cat is on the mat”, ficamos todos contentes e achamos que estamos a perceber o que é o significado de “o gato estar no telhado”. Porém, o gato deve ser um gato conhecido, o telhado deve ser o telhado da casa da pessoa que falou. Contudo, o gato pode ser de muitos tipos, o telhado pode ser de muitos tipos. Que casa é aquela? Onde é que está? Todas estas coisas não estão na frase. Portanto, de uma certa maneira, nós ficamos satisfeitos, mas estamos a dizer muito pouco. A informação é pouca, embora naquele momento possa servir se a situação e o contexto o deixarem, senão a gente tem de passar a fazer perguntas: “Mas que gato?”, “Mas de que cor é o gato?”, “Mas que casa?”, “Mas que telhado?”. Estão a ver a quantidade de perguntas que se pode fazer?
O trabalho da Senhora Professora é desenvolvido no âmbito da Semântica Formal. De que forma é que esta perspetiva se pode coadunar com outras abordagens, como a da Semântica Cognitiva?
Quando há Semântica, o objetivo é sempre o mesmo: tentar perceber o que é o significado. Agora, o que acontece é que os pontos de partida, as metodologias, as técnicas, a própria conceção do que nos pode levar a uma eventual resposta do que é o significado podem ser muito diferentes. Na verdade, Semântica Cognitiva não é um termo muito adequado, porque isso quereria dizer que, se calhar, havia Morfologia Cognitiva, Sintaxe Cognitiva, etc., e não há. Além disso, Semântica Cognitiva é um termo que cobre muita coisa.
Há alguns princípios muito diferentes naquilo que estamos a pôr debaixo de uma “etiqueta” – ela em si também variável, dependendo das diferentes teorias. Por exemplo, para a Linguística Cognitiva, embora esta também contemple várias teorias, a conceção é de que a Gramática não é modular, não existe Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Pragmática, ou seja, tudo está interrelacionado. A linguagem não é um módulo especial, como devem ter ouvido falar a propósito da Gramática Generativa, e não há um pressuposto de universalidade, o que constitui um dos princípios da Gramática Generativa. Portanto, são conceções muito diferentes. Como não há um reconhecimento de módulos diferentes, tudo entra, de uma certa maneira, ao mesmo tempo, no processamento linguístico e, tanto quanto eu conheço, a Semântica é muito lexical, muito baseada no estudo do significado das palavras ou dos morfemas.
A Semântica Formal, no fundo, usa condições de verdade, a referência tem um papel muito importante, ou seja, aquilo acerca de que se fala, de uma certa maneira, o extralinguístico; mas o extralinguístico não está sozinho, porque Frege também falou da diferença entre referência e sentido, portanto, há conceitos. Agora, como dizia Max Cresswell, um grande lógico e filósofo, existe também “The most certain principle”, ou seja, podemos não saber o que é o significado, mas, perante uma determinada situação, tendo duas frases e sendo uma delas verdadeira e a outra falsa, sabemos que não têm o mesmo significado. A ideia é que tem de haver princípios básicos e um deles são as condições de verdade. É preciso ter em conta que não se trata de o falante falar a verdade porque a oposição não é com “mentira”. Quando se fala do conceito de verdade, trata-se de saber quais as condições para que aquilo de que se fala, aquela frase ou, melhor dizendo, aquela proposição que eu acabo de dizer seja verdadeira ou, caso contrário, falsa. Portanto, são princípios muito diferentes os que regem a Semântica Formal e a Semântica Cognitiva e, por isso, aceita-se a ideia de níveis diferentes de análise.
Nas primeiras décadas do século XX, havia uma grande discussão tanto na Europa como nos Estados Unidos sobre se seria possível haver lógicas para as línguas naturais. O Círculo de Viena, nos anos 30, dizia que isso era impossível, porque as línguas são muito confusas. Além disso, havia também muitos lógicos nos Estados Unidos que achavam que as línguas eram demasiado confusas para ter alguma lógica. Richard Montague, que foi o segundo grande marco, paralelo a Noam Chomsky, se quisermos falar de Gramática Generativa, e não foi mais porque morreu muito novo, com 40/41 anos, lança uma pedra no charco com um artigo extremamente provocador, onde apresenta a formalização de um fragmento da língua inglesa, dizendo que uma língua natural pode ser formalizada.
A partir daí, usando instrumentos lógicos que já existiam e congregando-os para fazer o tratamento de um fragmento da língua inglesa, ele mostra que é possível formalizar as línguas. Isto acontece em 1970 e Montague morre em 1971. É a partir dessa altura que mesmo lógicos que não estavam convencidos começam, devagar, a perceber que há muitas coisas que podem ser formalizadas nas línguas. Eu acho, mas isto agora é uma opinião, nunca vi nenhum semanticista dizer isto, que a formalização é absolutamente crucial em Semântica pelo seguinte motivo: se vocês pensarem na Fonologia, na Morfologia, na Sintaxe, tudo isso tem muito a ver com a forma da língua, mas a Semântica não necessariamente.
A Semântica é a área que tem uma parte formal e uma parte que não é formal. Portanto, é como areia nas mãos: se a gente não aperta bem os dedos, desaparece. E o que é apertar os dedos? É formalizar, encontrar maneiras, critérios, princípios, formalização, tanto quanto a necessária, para poder captar algumas generalizações. Porque se nós não fazemos generalizações, o que estamos a fazer em Linguística? Tem de haver sempre um elemento nuclear a partir do qual depois temos expansões. Mesmo na Linguística Cognitiva, onde se utilizam vários modelos, existe um, que é a Teoria dos Protótipos, proposto primeiramente por uma pessoa da área da Psicologia, Eleanor Rosch, que diz que há sempre um elemento que é básico, nuclear, prototípico, a partir do qual se desenvolvem as ramificações. Claro que aí entra também um aspeto, muito importante para a Linguística Cognitiva, que é o conhecimento enciclopédico.
É curioso que, em 1930, Leonard Bloomfield dizia que se podia estudar a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe das línguas, mas não se podia estudar a Semântica exatamente porque estava relacionada com esse conhecimento enciclopédico. Por outro lado, a Semântica Cognitiva é muito mais recente do que a Semântica Formal. No entanto, há algumas coisas que se podem associar à Linguística Cognitiva que usamos nalguns trabalhos do nosso grupo de Semântica, nomeadamente nos estudos sobre preposições. São aspetos relacionados com as propostas de Leonard Talmy, particularmente os conceitos de ground e figure. Isto quer dizer que também se podem usar algumas propostas da Linguística Cognitiva, mesmo que não se trabalhe nessa área. Não estão impedidos os contributos de um lado e do outro, porque uma coisa é trabalhar num modelo, outra coisa é poder aproveitar algumas coisas que outros já propuseram e que podem ser úteis.
Para terminar este ponto, já em 1979, Barbara H. Partee, num livro que se chama Semantics from Different Points of View, tem um artigo intitulado Semantics - Mathematics or Psychology?, em que a autora discute tudo isto. Portanto, é uma questão que tem estado sempre subjacente. Aliás, o facto de haver, através da referência, esta relação tão importante com a realidade, com o ser verdade, etc., tem a ver, com certeza, com a cognição, porque as línguas não são diretamente a realidade, representam-na de uma certa maneira. Isto é, se a gente soubesse o que é a realidade…
Durante a sua carreira, dedicou-se também ao estudo de questões semânticas em vários géneros textuais, como artigos de opinião, crítica cinematográfica ou outros textos de apreciação crítica. De que forma é que a Linguística de Texto e a Semântica se aproximam, e como surgiu o interesse para a incursão nesta diferente área da Linguística?
Para além disso, também estudei, juntamente com colegas do meu grupo, textos literários. Estou a lembrar-me do Felizmente Há Luar e de outro fragmento de um conto da Sophia de Mello Breyner.
Para responder à pergunta, eu não trabalho em Linguística de Texto. Por isso, quando faço uma incursão dessas, trabalho com alguém que trabalhe nessa área. No entanto, uma coisa é verdade: o texto é feito de palavras e não são palavras à solta, são palavras que se constroem em frases, e frases que se constroem em sequências de frases, que são fragmentos linguísticos. Portanto, se o tipo de Semântica em que eu trabalho é sobretudo sobre frases, e muitos dos problemas são mais interessantes e mais estimulantes quando temos frases complexas, é natural que haja uma extensão para fragmentos maiores porque, na verdade, às vezes, há certas questões que não surgem em frases simples.
Pensemos no Tempo, de que há um bocadinho estávamos a falar. Em PE, há certos tempos verbais que ocorrem sem problemas em frases simples: o caso mais clássico é o Pretérito Perfeito Simples. Porém, há depois outros tempos que já não ocorrem tão facilmente nesse tipo de frases. Então, para nós compreendermos verdadeiramente a semântica desses outros tempos verbais, temos de passar para frases complexas. As frases complexas colocam outros problemas, de subordinação temporal, por exemplo, e, quando os fragmentos aumentam, os problemas são ainda mais estimulantes e interessantes. No fundo, há temas semânticos que são absolutamente cruciais para a coesão de um texto. Um deles é exatamente o Tempo, que não se pode separar do Aspeto. Outro é toda a parte nominal. Este tipo de trabalho em que a Semântica colabora localiza-se sobretudo, mas não só, na microestrutura, mas pode contribuir também para uma delimitação da macroestrutura.
Em geral, penso que a Semântica pode contribuir para outras áreas e, em sentido contrário, também se enriquece. Se não conseguirmos estabelecer tal cooperação, seja com que área for, é porque não estamos, se calhar, num bom caminho ou não estão ainda reunidas as condições para que isso se faça, o que às vezes também acontece. Todos os que fizeram já Sintaxe ouviram dizer aquilo que Noam Chomsky sempre defendeu: a independência da Sintaxe. Ele lutou muito contra a Semântica, mas depois conheceu o trabalho de Jerrold Katz e Paul Postal, dois filósofos que propuseram algumas alterações que vêm a ser contempladas no livro Aspects of the Theory of Syntax, de 1965. Chomsky dizia que a estrutura profunda era uma boa entrada para o estudo semântico e o que Katz e Postal propõem para o estudo de questões como a negação e a interrogação é que esses operadores já estejam na estrutura profunda. Isso vem realmente revolucionar as coisas e hoje em dia a representação contempla já muitos outros aspetos.
O que quero dizer é que, às vezes, não estão ainda reunidas as condições, não há ainda conhecimento suficiente, por vezes há também dificuldade de comunicação de uma área com a outra. Em todo o caso, eu acho que é uma boa estratégia considerar diferentes módulos na Gramática em termos de conceptualização e porque nós não conseguimos estudar tudo ao mesmo tempo e, por isso, temos de ir por etapas. Por exemplo, à medida que se sabe mais de Semântica, e isso começou a acontecer a partir do final dos anos 70 e o princípio dos anos 80 do século passado, começou a perceber-se que a fronteira entre Semântica e Pragmática não era tão clara como parecia e que, para fazer um determinado tipo de Semântica, era necessário algum conhecimento, se bem que não necessariamente os modelos extremamente complexos, de Sintaxe. Tudo isto faz parte da evolução científica e tem realmente a ver com a etapa do desenvolvimento das áreas, com os conhecimentos que se tem e com a capacidade de pessoas de diferentes áreas dialogarem ou não.
Na extensa lista das suas publicações, encontram-se ainda trabalhos sobre o ensino de alguns tópicos da Semântica na aprendizagem do Português, quer como língua materna, quer como língua segunda. Poderia falar-nos um pouco sobre o lugar que a Semântica deve, na sua perspetiva, ocupar no ensino das línguas?
Com muito gosto. Eu acho que depende daquilo que se está a ensinar relativamente a uma língua. Quando se está a falar do ensino do Português, quer como língua materna, quer como língua não materna, não se está a falar de dar aulas de Semântica aos estudantes. Quem precisa de ter essa formação básica são os docentes para poderem explicar de uma maneira adequada várias coisas. Voltemos, por exemplo, ao Tempo. Se o docente não tiver uma informação sólida da semântica do Tempo, limita-se a dizer banalidades e, às vezes, coisas que não estão certas. Infelizmente, os programas de ensino do Português como língua materna têm sofrido várias alterações e a Semântica dificilmente entra ali. Porém, para ensinar os tempos verbais em Português é importante haver um conhecimento semântico sólido. Não se trata de uma questão da forma, de saber qual é o morfema do tempo X, Y ou Z porque isso os alunos aprendem facilmente.
O que interessa é conhecer a semântica desses tempos verbais. É por causa desse conhecimento, ou da sua ausência, que depois se aplicam mal os tempos verbais e não se consegue selecionar o que está certo. Um exemplo central disso em Português é o caso do Imperfeito. O Pretérito Imperfeito é fonte de muitas dificuldades para estudantes que têm como língua materna, por exemplo, o Mandarim ou o Cantonês, línguas que não têm tempo, como lhes disse há bocadinho. Além disso, de acordo com estudos que fizemos mais breves, até para estudantes que têm línguas maternas como o Espanhol ou o Francês – que têm o Imperfeito, mas que não tem sempre a mesma semântica que em Português – esse tempo verbal pode ser problemático. Aliás, por isso é que, quando se diz acerca de um determinado assunto estudado numa ou duas línguas românicas que aquilo é uma caraterística das línguas românicas, isso frequentemente não é verdade. Em suma, penso que, dependendo dos temas que estão a ser ensinados, a Semântica pode fazer falta. Há assuntos, tópicos que são absolutamente cruciais e que os docentes devem conhecer para que possam veicular a informação de maneira clara e adequada ao nível de ensino em causa.
Quais são as áreas ou tópicos que ainda não explorou e que gostaria de investigar ou que sente que podem ser de particular interesse para jovens investigadores que escolheram a Semântica como área de especialização?
Repito, a Negação. Não sei se tenho tempo para isso. A negação é uma coisa que exige um grande estudo. Às vezes digo que a investigação é como construir um edifício. Primeiro são as fundações, os alicerces. Depois, cresce rapidamente. Depois, os acabamentos também levam tempo. A Negação necessita, realmente, de uns alicerces muito sólidos para se poder compreender, por isso é que eu estou a dizer que não sei se tenho tempo. No entanto, os jovens podem perfeitamente fazê-lo, têm todo o tempo à sua frente. Há outro assunto que eu acho que também é muito interessante, no qual eu já toquei, mas gostaria de voltar a tocar, tem a ver com a estrutura informacional.
Dizendo de maneira muito simples, as questões de tópico e foco. Isso pode ser estudado em várias perspetivas, a melhor maneira mesmo seria a colaboração com a área da Fonologia, por causa de questões de prosódia, e com a Sintaxe. Os entailments, de que há bocadinho eu falava, têm exatamente a ver com a estrutura informacional, com aquilo que nós escolhemos dizer. Esse assunto é um mundo. Há muitos estudos, há até gente muito importante da área da Semântica que tem ou teve projetos nesta área e é um passo em relação a uma coisa que eu acho que é muito importante: o dinamismo da Semântica. Eu penso que essas são duas áreas que podem ser de grande interesse. Agora, há imensas coisas que parecem sempre pequeninas, mas que envolvem tanta coisa ao mesmo tempo.
Pegando agora em classes de palavras, eu acho que os adjetivos são também um mundo. Há vários estudos sobre eles, mas continuam a ser um mundo a explorar. E eu vou dizer um segredo. Se tiver tempo, queria estudar aquilo que se chamam os adjetivos extremos (“excelente”, “magnífico”,...) porque são adjetivos qualificativos e esses adjetivos têm tipicamente grau (“muito interessante”, “muito alto”,...). No entanto, não se diz “muito excelente” nem “muito magnífico”. Não se pode usar, pelo menos, este quantificador de grau e isso é uma coisa que me interessa. Porque é que isso acontece? O que é que está por detrás disso? Será que estes casos põem em causa a própria questão do grau ou da escalaridade dos adjetivos? Não sei responder, mas um dia, se tiver tempo, acho que seria um tema muito interessante para explorar. Há outro domínio em que eu acho que basta escolher um ou dois casos que são as preposições. Acho que é um mundo que ainda está pouco trabalhado e que é sempre muito complexo.
As línguas têm mais ou menos preposições e, por exemplo, em Português há algumas diferenças, relativamente a uma determinada preposição, entre as variedades da língua. Já para não comparar com outras línguas que não são o Português. Explorar as ideias que, como eu disse há bocadinho, se foram buscar à Linguística Cognitiva, de ground e figure, mas também a ideia de percurso ou path, ou seja, a diferença entre preposições que podem ser associadas a movimento ou serem estáticas. Veja-se: nós [os falantes de Português Europeu] vamos “à biblioteca” e os brasileiros vão “na biblioteca”.
Penso que há também muito a fazer ainda em Português sobre classes semânticas dos verbos. Um outro domínio que é muito importante e que se está já a estudar é o implícito. O implícito não no sentido mais pragmático do termo, mas a possibilidade de, em sequências de frases, um argumento não estar explicitado e ser percebido e retomado. Como é que isso se constrói? Há muitos assuntos ainda a serem estudados em Semântica.
Agora, por exemplo, se compararmos PE com PB, a questão do contável e não contável é absolutamente importante. O PB é uma língua que tem uma combinação de tudo. Há semanticistas brasileiros que defendem que os nomes que nós consideramos contáveis, na conceptualização do PB, não são contáveis, são massivos, e isso advém da possibilidade de ter nomes contáveis no singular sem determinante em posição de sujeito, por exemplo. Há outro assunto que é muito interessante: a palavrinha maravilhosa “qualquer”. Há quem diga que é um quantificador universal, que é um quantificador existencial ou um quantificador de escolha livre. E, portanto, o que é que é?
Enquanto investigadora, a Professora teve oportunidade de participar em inúmeros congressos e projetos nacionais e internacionais com diversos colegas. Houve algum congresso/conferência e/ou investigador que tenha tido um impacto forte no seu trabalho?
Houve, houve. Se associarmos tudo isto, eu diria que uma das coisas mais importantes foram os diferentes cursos que eu fiz no estrangeiro. O primeiro foi um curso de três – em janeiro passado fez 45 anos que eu estou aqui na Faculdade – e fiz em 1977 um curso de verão com grandes nomes da Linguística, da Semântica e da Lógica. O curso foi organizado pelo Antonio Zampolli e o título era algo como “Linguística matemática e computacional”. Fiz vários cursos (de Lógica Intensional, Linguística Computacional, entre outros) que foram muito importantes para mim. Um deles com Yorick Wilks, que na altura era um investigador muito reconhecido e foi aí que, pela primeira vez, percebi que se podia fazer aquilo que agora se chama processamento natural da linguagem, portanto, proceder ao estudo computacional das línguas.
Tive aulas com Michael Halliday, com Lauri Karttunen, que foi quem introduziu pela primeira vez o conceito de referentes discursivos num artigo dos anos 60 e que dava aulas às 8 horas da manhã de Lógica Intensional. E, já agora, a ideia de universo do discurso, que toda a gente agora usa, foi também mencionada pela primeira vez por um matemático chamado George Boole em meados do século XIX. Podem encontrar isso num livro que se chama The Laws of Thought. O George Boole, que é o mesmo da Álgebra de Boole, que também é muito utilizada para estudos semânticos, nomeadamente na Teoria dos Reticulados.
Voltando à pergunta, o curso que realizei em 1977 foi muito importante para mim. Depois, participei também durante alguns anos nuns cursos de verão anuais feitos na Europa, em diferentes universidades, com o título geral de Logic, Language and Information. Ainda se fazem, só que eu agora já não tenho muita paciência para ir. Quer dizer, se para o ano tiver menos trabalho… Aí tive aulas com os maiores craques do mundo. Conheci a maior parte dos capítulos que originaram mais tarde o livro From Discourse to Logic, publicado em 1993 por Hans Kamp e Uwe Reyle, porque tive aulas com Kamp nesses cursos. Aquilo era a nata da Semântica. Havia também alguns aspetos mais computacionais e fiz também várias cadeiras de Lógica que eram realmente assombrosas.
Assisti às aulas de Patrick Blackburn, que era absolutamente fabuloso. Tinha uma capacidade de transmitir, de refletir sobre tudo aquilo... Era um deleite, ele tinha sempre os anfiteatros cheios de pessoas, mesmo quem já conhecia os assuntos de que falava. Eu até cheguei a assistir a um curso dele de Introdução à Lógica só pelo prazer de assistir àquelas aulas e de ver maneiras diferentes de falar de um determinado assunto. Era realmente espetacular. Aí conheci também o Gennaro Chierchia, o David Dowty! Depois fiz também um curso de três semanas no princípio dos anos 80 em Salzburg, muito virado para Sintaxe. Aí tive a oportunidade de fazer vários cursos de Sintaxe com o Luigi Rizzi e com o Joseph Aoun e fiz dois cursos de Lógica com o Robert Wall, que era coautor, com a Barbara H. Partee, de um livro clássico que se chama Mathematical Methods in Linguistics. Esses cursos foram todos muito importantes porque me formaram e me deram a possibilidade de eu poder ler e compreender textos, às vezes muito formais, da Semântica.
E foram todos cursos de verão?
Sim, sim. Só que eram cursos longos, duravam entre três semanas e um mês. Aquilo era intensivo. Aliás, o Robert Wall disse que dava naquelas três semanas o que dava num semestre lá nos Estados Unidos, porque nós tínhamos aulas todos os dias. Depois houve também vários congressos importantes, mas vou contar o primeiro em que eu fiz uma comunicação fora de Portugal. Foi num grande congresso de Linguística e Filologia Românica que ainda se continua a realizar mais ou menos de 3 em 3 anos e, em 1981 talvez, aquilo era a minha primeira comunicação no estrangeiro. Então, primeiro, levantei-me, tentei falar e fiquei sem voz (risos). A segunda vez que eu tentei falar entrou muita gente na sala e eu também não podia falar. E então só à terceira é que consegui falar. Quem presidia a essa mesa? Um importantíssimo linguista, semanticista francês, com quem a partir dali, depois de termos conversado muito na sequência da minha apresentação, fiquei amiga para sempre, que é o Georges Kleiber. Conheci-o pessoalmente assim e ainda hoje contactamos e somos amigos.
Agora, outras figuras muito importantes. Já falei do Professor Óscar Lopes, que foi realmente absolutamente crucial, sobretudo porque ele foi um dos meus orientadores de doutoramento e eu ia com frequência a casa dele, ao fim da tarde, para, supostamente, trabalhar sobre a tese, mas na verdade muitas vezes não era sobre a tese, era sobre os problemas semânticos que o ocupavam, que o interessavam, sobre alguma coisa que tinha lido e sobre a qual queria discutir. Mas de que é que me serviram estas vezes em que eu ia falar com o Professor Óscar Lopes e que não falava da minha tese? Eu aprendi imenso. Porque, quando ele me falava de problemas linguísticos, semânticos, que ele estava a colocar, eu estava a aprender imenso e depois discutia com ele, porque ele dava-me a possibilidade de eu discutir – eu tinha muito o hábito de dar contraexemplos – e, portanto, eu aprendi muito, muito, muito com ele e, por isso, fui sempre sabendo mais do que aquilo que eram os tópicos em que eu estava a fazer investigação.
Falando de pessoas que foram importantes, o outro meu orientador, que é da área da Pragmática: Herman Parret, que é belga. Estive na Bélgica algum tempo a estudar com ele quando estava a fazer o doutoramento. Depois, o contacto com Johan van der Auwera, cujo modelo de lógica trivalente eu usei para a minha tese de doutoramento. Do ponto de vista histórico, estas são algumas pessoas que foram importantes. Conheci outras, muito interessantes, em congressos, mas estas foram, de alguma maneira, fundacionais. Vi muitas coisas, muitos linguistas interessantes em vários países do mundo, mas não tiveram uma influência direta. Aliás, isto da influência direta acontece quando somos jovens e, eventualmente, pode acontecer quando a certa altura a gente muda de orientação, aí pode haver também figuras muito importantes.
A Professora lembra-se de qual foi a apresentação que fez nesse congresso em que lhe faltou a voz?
Lembro, lembro! Era sobre verbos modais. Eu andava ocupada com aquelas coisas e estava muito no princípio, porque eu defendi a tese em 1988 e essa conferência foi em 1981 ou em 1983. Estava ainda muito no princípio, mas pronto, o Georges Kleiber lá achou que eu tinha boas ideias.
Vamos falar novamente um bocadinho sobre o Professor Óscar Lopes: a Senhora Professora esteve desde o início ligada à criação do CLUP com o Professor Óscar Lopes, tendo sido durante vários anos Coordenadora Científica do Centro. Poderia partilhar connosco a sua perspetiva sobre esse momento, sobre a importância do papel que o CLUP teve, como primeiro centro de Linguística no Porto, depois da Revolução, nos estudos linguísticos? Sobre o que significa para a Senhora Professora estar ligada a essa instituição desde o seu início e sobre a influência que o Professor Óscar Lopes teve junto do centro e mesmo da sua relação com a Linguística?
Falo com muito gosto! A criação do Centro de Linguística foi uma ideia do Professor Óscar Lopes. Como eu já tinha dito anteriormente, o Professor Óscar Lopes só entrou na universidade portuguesa, embora tenha havido várias tentativas anteriores que nunca funcionaram, depois do 25 de Abril. Eu não estava cá ainda, mas, segundo me contaram, foi numa Assembleia Geral da Faculdade que decidiram que o iam convidar e foram a casa dele buscá-lo para ir para a Faculdade de Letras. Depois não sei como é que foram as coisas, mas sei que foi Diretor da Faculdade e, em 1976, ele começa a falar da necessidade de fazermos um centro de Linguística com os linguistas que tínhamos na altura. Resta dizer que o Professor Óscar Lopes lecionou várias cadeiras. Uma delas, completamente inovadora na altura, foi Linguística e Matemática, que era lecionada à Licenciatura como uma cadeira de opção, se eu não estou em erro, mas que tinha sempre muita gente a assistir.
Portanto, o Professor Óscar Lopes começou com essa ideia do centro na altura em que a instituição nacional de investigação com a qual nos relacionávamos ainda era o INIC, o Instituto Nacional de Investigação Científica, que depois deu a JNICT e, posteriormente, a FCT. Foi através dessas relações e desse trabalho que foi estabelecido que, a certa altura, se fundou o Centro de Linguística da Universidade do Porto.
Penso que foi muito importante porque sempre integrou todos os linguistas que trabalhavam aqui na Faculdade, em diferentes épocas, em diferentes alturas. Sempre tem sido uma caraterística do Centro ter pessoas que trabalham em áreas muito diferentes, mas que, de uma certa maneira, se têm sempre associado e feito parte do Centro. Isso foi muito importante porque, mesmo com conceções linguísticas diferentes, foi possível criar, por exemplo, várias coisas tangíveis como a bibliografia (gesto em direção às estantes do CLUP).
Isto é só parte da bibliografia que temos, dos periódicos que se assinavam, dos contactos que estabelecíamos. Não é que na altura houvesse muito dinheiro para viagens e outras coisas, mas havia algum. No entanto, o financiamento da investigação naquela altura era muito menor do que pode, com alguma sorte, ser hoje, com projetos, centros de investigação, etc. Para ir a muitos daqueles cursos a que eu fui, não fui financiada e isso mudou muito, entretanto. Contudo, se tínhamos algum dinheiro, convidávamos imensos investigadores e linguistas importantes para virem ao Centro e à Faculdade fazer conferências e/ou cursos e isso foi uma maneira de abrir muito os horizontes. Era uma prática que nós tínhamos e que era muito importante: ouvir pessoas falar sobre vários assuntos. Vieram aqui pessoas não só das mais diversas áreas de trabalho, como das mais diversas orientações e isso abriu-nos também muito os horizontes. Na altura, fiz parte da comissão da fundação, com o Professor Óscar Lopes e outras pessoas, e depois, o Centro foi-se alargando. Foi muito importante e continua a ser muito importante. Tem uma muito boa biblioteca para um centro que, comparado com outros, como o de Lisboa, tem uma vida muito mais curta.
Hoje em dia, muitas publicações se conseguem através da internet, mas antes havia pedidos de publicações daqui do Centro para muitas instituições de fora e, por isso, vinham aqui à biblioteca muitas pessoas de outras instituições para consultar obras. Desse ponto de vista, foi muito importante não só para nós como para outros investigadores. No que toca à minha experiência em cargos de direção, apesar de ter feito parte de comissões diretivas anteriores, saliento a de ter sido primeiro Presidente da Comissão Diretiva e depois Coordenadora Científica durante uns bons anos. Gostei! Quer dizer, dá sempre muito trabalho… Foi nessa qualidade que propus o Quid Novi?, chegámos a fazer edição de vários números de working papers na área da Linguística que se chamavam Cadernos de Linguística.
Em geral, penso que sim, que o Centro de Linguística foi e é muito importante para a Linguística e esperemos que cada vez tenha mais membros!
A Senhora Professora colaborou com a comissão de estudo para aplicação dos acordos de Bolonha na FLUP em 2004. Gostaríamos de saber se nos poderia falar desse processo, contar-nos a sua experiência e dizer-nos algo do legado que os acordos trouxeram, passados que estão 17 anos?
É verdade, já foi há tantos anos que quase já não me lembro! Pertenci a uma comissão que se constituiu no DEPER (Departamento de Estudos Portugueses e Românicos). Uma das coisas que foi preciso fazer foi o estudo de toda a documentação. Lembro-me também de ter ido a workshops e a alguns encontros, alguns deles até fora do Porto, sobre tudo isso porque havia uma grande indecisão e depois, aqui, na Faculdade, havia também uma grande discussão sobre aquilo tudo, porque quando as coisas são novas... Realmente foi um período de uma grande animação porque uns eram a favor, outros eram contra e as razões eram diversas. Tínhamos muitas reuniões no departamento e às vezes alguns embates porque parecia que nós eramos o ministério ou qualquer coisa assim, mas isso faz parte de todas estas coisas.
Sobre o que é que eu penso: infelizmente, quase penso o mesmo que pensava na altura e vou dizer porquê. Eu acho que a ideia é muito interessante. Independentemente de serem três, quatro anos, seja o que for, a ideia de que se tem uma formação básica em três anos e que ela possa ser razoavelmente equiparada nas várias instituições no Ensino Superior Europeu, mesmo que não seja bem isso que acontece, ter percursos em licenciaturas com pelo menos cinco cadeiras opcionais – eram as orientações, na altura, da Reitoria e Ciências da Linguagem tinha – é muito interessante.
Eu acho que a ideia de que o ensino tem de ser virado para o estudante e para o acompanhamento do estudante é muito importante. Também acho relevante que as formas de avaliação sejam também nesse sentido, diversas, e que haja um tempo muito importante dado aos estudantes para eles estudarem por si. Aliás, isto não é muito diferente do que já se fazia em Inglaterra, em que os tempos de aulas eram curtos e os estudantes tinham muita independência. Para mim, o grande problema, embora não possa dizer que está a funcionar muito mal, é que isto significava, para ser levado até ao fim, uma alteração substancial em vários hábitos ou tradições que nós tínhamos no ensino. Teria de haver um número menor de estudantes por turma, porque eu acho que um processo em que há um grande acompanhamento no sentido de os estudantes se poderem tornar progressivamente mais autónomos no seu estudo, no seu trabalho e questionamento, exigia um esforço e, se calhar, até uma maneira de dar aulas e de trabalhar com os estudantes diferente. Provavelmente, não eram precisas tantas aulas e era preciso mais acompanhamento.
Houve uma série de coisas que se mantiveram e, portanto, o resultado nunca pode ser tão bom como poderia esperar-se. É verdade que eu, sobretudo nos últimos anos, tive turmas um pouco mais pequenas, mas, já depois do processo de Bolonha, cheguei a ter UCs com 70 alunos. É impossível. Quando começou o processo de Bolonha, com muitas cadeiras e algumas com muitos alunos, eu quis fazer tudo como achava que devia ser, apenas com avaliação distribuída. Eu ia dando em doida porque com tantas aulas e tantos estudantes não podia acompanhar bem os estudantes. Nunca lecionei uma cadeira apenas com exame final, mas claro que depois tive de começar a defender-me porque não conseguia estar a ver não sei quantos trabalhos de não sei quantos estudantes, mais os testes, mais aquilo, mais aqueloutro. Isto é só para dar um exemplo (semelhante a tantos outros) de que houve várias coisas que não correram bem, que a ideia inicial foi melhor do que acabou por ser na realidade.
Tendo estado ligada durante a sua carreira a cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento na área da Linguística, acompanhou e orientou o percurso de estudantes que hoje são professores e investigadores. Como descreve esse sentimento?
Descrevo como um maravilhoso sentimento porque acho que isso quer dizer que o meu trabalho com esses estudantes foi importante para eles. Acho que não há alegria maior para um professor do que formar estudantes, vê-los crescer do ponto de vista científico e até, de preferência, que sejam melhores do que nós, porque isso significa que as sementes que nós plantámos foram bem regadas e floresceram muito mais. Portanto, eu fico muito feliz cada vez que isso acontece, é muito gratificante.
A mim o que me interessa, no fundo, são duas coisas: primeiro, que os estudantes possam ser felizes; e depois, que aquilo que eu ensinei os ajude na vida deles. No outro dia, vim cá à faculdade para estes exames excecionais em setembro por causa de um estudante que não fez o exame na época normal por causa da Covid-19 e eu perguntei-lhe: “Então, correu bem?”. Ele disse-me: “Não, correu mal. Vou fazer para o ano, mas, olhe, aprendi muito! Serve-me muito para o meu trabalho.” Ele sabia que já não ia voltar a ser professora dele, mas, apesar de tudo, disse-me que aprendeu alguma coisa e isso é um gosto, ver os estudantes assim entusiasmados. Devo dizer que é mesmo muito gratificante. Durante muitos anos, dei também aulas no mestrado de Tradução – e falo disto porque a maior parte das pessoas que estão no mestrado de Tradução não tiveram Linguística ou até alguma coisa que se assemelhe à Linguística – e normalmente sempre se entusiasmavam e eu sempre tive muito bons resultados nessa cadeira. Quer dizer, eles tiveram bons resultados. Isso era também muito gratificante, era sempre uma alegria nas aulas. É das coisas que calam mais fundo num professor: a formação e, como disse, o desejo de que sejam melhores do que nós.
Ao longo da sua carreira, lecionou e deu palestras em várias universidades no estrangeiro, e teve contacto com vários estudantes de doutoramento e mestrado oriundos de diferentes países, com diferentes línguas maternas. De que modo é que estas experiências influenciaram ou complementaram a sua vida profissional, particularmente no que diz respeito ao contacto próximo com dados de línguas diferentes?
Claro que foram muito importantes, sobretudo conhecer línguas com características diferentes daquelas que eu conheço. Foi sempre muito enriquecedor por duas razões: primeiro, porque tentamos compreender algumas coisas de uma outra língua; a outra razão é porque, ao tentar compreender coisas de outra língua, vamos olhar para a nossa de outra maneira e vamos olhar para coisas em que, se calhar, nunca tínhamos reparado, mas que, de maneiras diferentes, também existem na nossa língua. Isso é sempre um grande enriquecimento.
Além disso, quanto mais estudos nós conhecemos sobre línguas diversas, melhor é o nível geral para podermos começar a compreender alguns aspetos centrais do ponto de vista linguístico. Há certas especificidades nas línguas que, se nós as dissermos a alguém que não conheça essas línguas, essa pessoa não vai acreditar, porque a verdade é que nós somos etnocêntricos, achamos que todas as línguas são como a nossa, e, por isso, quanto mais línguas forem estudadas, melhor iremos compreender o problema geral. Por exemplo, hoje em dia, na Semântica, estudam-se algumas línguas que, devo aqui confessar, eu nem sabia que existiam – só para lhes dar uma imagem da quantidade de línguas sobre as quais existem estudos semânticos atualmente. Durante muito tempo era só o Inglês, que é a língua mais estudada do mundo, mas depois, na Gramática Generativa, começou a haver estudos de outras línguas porque também começou a haver linguistas franceses, italianos e de outras nacionalidades e isso fez com que se alargasse o número de línguas estudadas.
Na Semântica, hoje em dia, esse alargamento é absolutamente crucial e extremamente enriquecedor, porque, como disse, permite que percebamos melhor algumas coisas de outras línguas e que olhemos para a nossa de maneira diferente. Nesse Mestrado em Tradução, às vezes, os estudantes diziam-me: “A professora sabe muitas línguas”, pois, conforme as línguas que os estudantes falavam, eu ia dizendo “Na sua língua é assim…”. Eu respondia-lhes sempre: “Não, não sei, mas estudei, li artigos e, por isso, é que posso dizer alguma coisa sobre essas línguas”.
Nas aulas, a Senhora Professora, faz, por vezes, referência a comparações entre o Português Europeu e o Português do Brasil. Nesse sentido, gostaríamos de perguntar quando começou o seu interesse pelas semelhanças e diferenças entre estas duas variedades do Português.
Bom, esse interesse começou de uma forma mais clara quando participei num projeto em 2000 que agrupava investigadores de Portugal e investigadores do Brasil e depois fizemos dois ou três colóquios, uma vez cá, outra vez lá. Isso foi muito interessante porque era estimulada a ideia de trabalharmos portugueses com brasileiros e isso veio estimular muito esse interesse pela comparação entre essas duas variedades do Português. Nessa altura, em 2000, havia ainda muito pouca gente de Semântica. Os semanticistas, pouquinhos, iam mais de Portugal. O que era dominante na altura no Brasil, para além da Análise do Discurso, era Fonologia e Sintaxe. Havia uma semanticista, a Ana Müller, que já participava nesse projeto e há depois também um conjunto de outros semanticistas, que vêm a tornar-se muito importantes no Brasil, pelo tipo de trabalho desenvolvido. Devo, contudo, dizer, que a grande maioria deles foi formada por um docente e investigador muito importante no Brasil, que é o Rodolfo Ilari.
O PB é absolutamente estimulante porque tem várias diferenças em relação ao PE e até a outras línguas românicas, como é o caso dos nomes, de que falei, ou, por exemplo, dos particípios. Vejamos, em PE, existem particípios regulares e alguns irregulares. Uma das coisas que se repetem por aí é que, quando o verbo tem dois particípios, o particípio regular ocorre com o auxiliar “ter” e o irregular com o “ser”. Se consultarmos dados de corpora, verificamos que não é assim, porque há muitos irregulares que se constroem com “ser” e com “ter”. O que é que acontece no PB? Ocorrem particípios irregulares completamente fora da norma. Por exemplo, pode dizer-se “tem perco” no sentido de “tem perdido”. Esse fenómeno tem sido estudado por um grupo de linguistas brasileiros encabeçados por Miriam Lemle, que demonstram que esses particípios irregulares só ocorrem com o verbo “ter”, nunca com o verbo “ser”. Quando eu tomei conhecimento disto, pensei que se tratava de um registo muito particular. Bom, não é que no ano passado, era eu diretora do Mestrado em Linguística, estava a presidir a uma defesa e oiço uma estudante brasileira dizer aquele particípio? (risos) Do ponto de vista sintático-semântico, o PB tem realmente imensas coisas interessantes.
Numa carreira tão longa, certamente, teve de ultrapassar vários obstáculos no âmbito tanto da investigação como da educação. Quais foram os maiores obstáculos ou dificuldades que a professora encontrou?
Em todas as vidas há sempre obstáculos. A vida não seria vida se não tivesse obstáculos, se não tivesse altos e baixos. Usando esta expressão dos altos e baixos: nos baixos é preciso aguentar e saber que não vão durar sempre. Porém, há outro elemento que é importante também: precisamos de saber que os altos não vão durar sempre também. Isto que eu estou a dizer é verdade acerca da vida em geral. Às vezes, quando somos muito novos, pensamos que cada uma das coisas vai durar para sempre, e não vai. Faz parte da vida e o que a gente tem de fazer é, nos obstáculos, ter resiliência, aguentar e exatamente saber que não vão durar sempre. Nos momentos iluminados, aproveitá-los. Usufruir, mas saber que aquilo é uma etapa como outra qualquer.
Em relação à investigação, um obstáculo é sempre a luta com os dados linguísticos. Trabalhar com dados é extremamente estimulante, mas, por vezes, parece um obstáculo intransponível, pelo menos para mim, que acho que os dados não podem ser forçados, são o que são, e o investigador deve procurar uma explicação para eles. Um outro obstáculo que já me aconteceu e acontece, tal como a toda a gente, é o seguinte: submeter um artigo ou resumo e ser recusado. Faz parte de uma vida em que há avaliação pelos pares! Do ponto de vista do ensino, não tive problemas, sempre me correram bem as coisas em termos de relação com os estudantes.
Mas há uma história, já bastante antiga, engraçada, que teve lugar no curso de Ciência de Informação. Eu dei lá aulas de Linguística numa UC semestral, ao primeiro ano da licenciatura, depois de ter estado um número razoável de anos sem lecionar um primeiro ano e ter perdido a noção de como eram os estudantes de primeiro ano. Chego à primeira aula, e encontro um estudante de boné que dizia muitas larachas para todos se rirem, outro que fazia não sei o quê que perturbava o ambiente… eu ia dizendo indiretamente que aquilo não podia ser assim, à espera que eles fossem percebendo o que eu estava a dizer. A certa altura aquilo já me estava a cansar, eu ia sempre enervada para as aulas. Um dia pensei: “não, isto tem de ter alguma solução”. Então resolvi um dia não dar a aula e falar com eles. Aqui entre nós, eu ia nervosa. Contudo, uma coisa eu notava: eles não faziam aquilo de propósito para me ofender nem para me chatear, era a maneira de estar deles. Nesse dia, eu falei, falei, falei, como estou a fazer aqui agora (risos), e, depois de ter dito tudo o que eu achava, disse: “Agora é a vossa vez de dizerem o que acham”. Silêncio. Depois, uma aluna disse: “Sabe, Professora, nunca ninguém falou connosco assim”. De facto, eu não lhes disse que deviam fazer desta ou daquela maneira, mas tentei mostrar-lhes a importância de certas coisas para as aulas, e para a vida deles em geral.
O resultado foi que eles passaram a comportar-se de outra maneira e depois de já nem serem meus alunos faziam-me uma grande festa no corredor, quando me encontravam. Portanto, acabou bem, mas foram momentos difíceis que duraram ainda umas semanas, porque eu tinha esperança de que eles percebessem o que eu estava a dizer, mas, na verdade, eles não tinham noção de como se comportar numa aula. Isso perturbava tudo o resto. Foi difícil, mas encontrou-se uma solução.
Neste momento de jubilação, após várias décadas de estudo dedicadas à Semântica, pensa já ter compreendido o que poderá ser afinal essa parte tão fundamental da linguagem humana que é o significado?
Pois é, é uma boa pergunta, mas para a qual eu não tenho resposta. E não estou sozinha! No princípio desta entrevista, mencionei Max Cresswell dizendo que podemos não saber dizer o que é o significado, mas que se duas frases têm valores de verdade diferentes, não têm o mesmo significado. O significado é realmente difícil de captar. Porém, eu penso que há uma ou duas coisas importantes sobre isso. Em primeiro lugar, devo referir o momento em que se passaram a considerar teorias dinâmicas do significado – como a DRT, a File Change Semantics, Update Semantics, Dynamic Model Theory Semantics –, em que o significado deixa de ser estático e passa a ser dinâmico, sempre em construção. Uma teoria dinâmica do significado propõe que o significado das palavras ou das frases seja construído no momento em que eu produzo um enunciado. Isto não quer dizer que não haja uma parte básica sólida, mas há uma construção à medida que vamos falando.
Portanto, nesse sentido, o significado não é fixo. Eu acho que isso é muito importante, a ideia de que falar é dar instruções ao nosso interlocutor para interpretar o que nós estamos a dizer, uma ideia muito importante na DRT e que vem do domínio cognitivo, para ligar com aquela outra questão que vocês me fizeram. É que, de facto, a Semântica Formal há muitos anos que não é aquilo que tradicionalmente se pensava que era e essa ideia de que o significado é dinâmico e não estático é um bom caminho para compreender ou para vir a saber o que é o significado.
Claro que depois temos coisas mais miúdas do significado. Por exemplo, como é que se sabe o significado de certo tipo de morfemas? A Professora Graça Rio-Torto tem muito trabalho sobre isso e fala do significado de certos morfemas. No entanto, mesmo encontrar o significado de certas palavras é muito complicado, porque depende das redes em que elas participam, dos usos que vamos ter. Eu lembro-me que, a propósito da Teoria dos Protótipos, é usada a ideia de family resemblance do Wittgenstein e o exemplo do autor acerca da palavra “jogos”: o que é que existe de comum entre “jogos de cartas”, “jogos de xadrez”, “jogos olímpicos” e outros casos em que aparece a palavra “jogos”? Portanto, o significado de palavras já é mais complexo, porque há muitas, apesar de existirem em número limitado. Depois, o significado das frases, pensando agora bem, tem de ser dinâmico, não é? Mas pronto, é preciso alguém ter a ideia para depois se poder dizer: “mas é que é mesmo assim!”. E quando se diz isso é porque aquilo foi uma boa ideia que ninguém ainda tinha tido. Portanto, dizer-lhes assim “o significado é isto” não sou capaz de o fazer, mas que ele é essencial, é. Falarmos uns com os outros é muito importante, é determinante para a nossa vida em sociedade, tendo em conta o que somos, seres humanos, e, de um modo geral, é importante transmitir significado, seja ele de que forma for. Às vezes, até pode ser com o silêncio, mas é verdade que, de um modo geral, a gente pretende transmitir algum significado. Pode ser informacional, pode não ser, nem sempre comunicamos para transmitir informação, mas o não transmitir informação também não quer dizer que não tenha significado. Embora o informacional seja mais fácil.
O George Lakoff – ah! eu também tive aulas com ele (risos) – foi um famoso aluno do Chomsky. Depois aborreceu-se com a Sintaxe e trabalhou em Semântica Generativa e, posteriormente, em questões cognitivas. Tem alguns livros; um deles, que é escrito com outra pessoa, chama-se Metaphors We Live By. Nele, dá um exemplo sobre como é que a gente compreende frases como, por exemplo, está uma mesa posta e alguém diz assim: “Sente-se ali no sumo de laranja”. Isto mostra que, na verdade, o significado não pode ser composicional, no sentido estrito do termo. “Sente-se num sumo de laranja” não é “sente-se em cima do sumo de laranja”, é “sente-se no lugar onde está um sumo de laranja”. Olhem, cá estão os implícitos!
Aquelas coisas que não estão explícitas, complementos e assim; ou argumentos... Portanto, é engraçado... e muito estimulante.
Terminada a entrevista, não posso deixar de voltar a agradecer a todos os que participaram, pelo trabalho na elaboração das perguntas, muito estimulantes e que me permitiram pensar e rever aspetos da minha vida de docente e de investigadora, e também pelo convívio tão aprazível no decurso da entrevista. Para todos, desejo um caminho iluminado e com muito entusiasmo pela Linguística.
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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.
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