Entrevista: Profa. Dra. Sónia Frota (Universidade de Lisboa)
- Moíra Souza
- 6 de nov.
- 30 min de leitura
Entrevista publicada no Vol. 14 N.º 1 (2025): elingUP: Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto
Sónia Marise Campos Frota é Professora Catedrática no Departamento de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no qual coordena cientificamente o Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL). Possui Mestrado em Linguística pela Universidade de Lisboa e concluiu o Doutoramento em 1999, na mesma instituição, com a dissertação Prosody and Focus in European Portuguese, sob a orientação das Professoras Doutoras Marina Nespor, da Universidade de Amesterdão, e Raquel Delgado Martins, da Universidade de Lisboa. Dirige o Lisbon Baby Lab e é Diretora Executiva do Mind-Brain College da Universidade de Lisboa. Desempenha também funções como Editora Principal do Journal of Portuguese Linguistics e Editora Associada das revistas Phonetica e Frontiers in Psychology – Psychology of Language. É ainda Vice-Presidente da International Phonetic Association e membro do Comité Consultivo Permanente da ISCAS ProSIG. É autora de obras de referência como Prosody and Focus in European Portuguese. Phonological Phrasing and Intonation (Londres, 2016) e participou em projetos de destaque como a Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, 2003). Pelo impacto da sua investigação, foi distinguida com o Prémio Científico ULisboa/CGD em Ciências da Linguagem (2016 e 2021) e com o Prémio Maria Teresa Palha (2022). Em 2024, foi classificada como a investigadora em Linguística mais bem posicionada em Portugal, integrando o top 4% a nível europeu e mundial, segundo o AD Scientific Index.
A entrevista realizada à Professora Doutora Sónia Frota ocorreu no dia 6 de janeiro de 2025, no Lisbon Baby Lab, em Lisboa, tendo sido conduzida por Cecília Ortiz, Cláudia Couto e Mariana Ribeiro. A entrevista foi preparada pelos estudantes Ana Fidelis, Cláudia Couto, Fábio Granja, Marina Araújo, Pedro Raínho e Tatiana Moura e, posteriormente, transcrita por David Garcia, Fernando Miguel Santos, Maria João Sá, Pedro Raínho, Tiago Azevedo e Tomás Moreira.
A Equipa Editorial agradece profundamente à Senhora Professora a generosa disponibilidade para esta conversa, que se revelou uma tarde memorável de partilha de saberes, experiências inspiradoras e valiosos conselhos.
Dentro de tantas áreas possíveis, o que a levou a tomar a Fonética e a Fonologia como as suas principais áreas de interesse na Linguística? E o que a leva a manter-se hoje nestas áreas?
Em primeiro lugar, quero também agradecer muito o convite para esta entrevista e é com enorme gosto que vos recebo, aqui, no laboratório. Já tenho acompanhado o vosso trabalho, conheço a revista e dou-vos desde já os parabéns pela iniciativa e por se dedicarem a fazer este tipo de trabalho. Porquê a Fonética e a Fonologia? E por que me tenho mantido nesses domínios científicos? Eu acho que a razão principal tem a ver com o facto de tudo aquilo que é estrutura ou categoria ou mesmo significado na linguagem ter de se materializar de alguma forma para que a língua exista e possa ser utilizada como um sistema de comunicação. A dimensão sonora da linguagem, que é precisamente o objeto de estudo, de maneiras diferentes, da Fonética e da Fonologia, é a forma privilegiada de materialização de tudo isto. E constitui também, o que para mim é muito importante, o primeiro contacto do bebé (se for um bebé ouvinte) com a linguagem. A dimensão sonora da linguagem tem uma propriedade, que, para mim, é absolutamente fascinante: o facto de interagir praticamente com todos os outros domínios da linguagem. Interage com a Morfologia, com a Sintaxe, com a Semântica, com a Pragmática. Portanto, por todas estas razões, é uma área de investigação que eu acho fundamental. É complexa, portanto, há muito trabalho para fazer. Uma vida só não chega! É absolutamente fascinante e, por isso, tenho trabalhado nesta área.
E em relação à Prosódia: como e quando começou a Senhora Professora a interessar-se pelo estudo da Prosódia na linguagem? Qual foi a principal motivação para seguir por este caminho de investigação?
Dentro da dimensão sonora da linguagem, é claro que há uma grande divisão tradicional entre o domínio segmental e o domínio suprassegmental. Eu descobri o domínio suprassegmental, vamos chamar-lhe a Prosódia, fundamentalmente durante o meu mestrado. Foi aí que me interessei mais pela Prosódia. Isso aconteceu devido à perceção de que a Prosódia é precisamente o componente da linguagem que faz a tal interface de que vos falei com os outros domínios da linguagem. No fundo, a Prosódia vai afetar a maneira como nós dizemos as consoantes e as vogais, vai afetar as palavras que podemos formar ou não, os significados das frases ou mesmo das unidades discursivas maiores. Portanto, em todas estas ligações com todos estes outros domínios da linguagem, os diferentes componentes da linguagem têm de se materializar de alguma forma e materializam-se numa estrutura sonora. Já agora, permitam-me acrescentar, muitas vezes pensamos que “estrutura sonora” é só som, mas nós hoje sabemos que, apesar do nome “estrutura sonora” poder ser um pouco enganador, existe também um componente gestual. Portanto, o som não existe por si só. Basta olhar para o que estou a fazer neste momento. O som é acompanhado por gestos e esses gestos são talvez tão importantes quanto o próprio som, no sentido tradicional. E, essa estrutura sonora que tem componentes gestuais, é organizada por um elemento. E qual é o elemento organizador dessa estrutura sonora? É precisamente a Prosódia. Quando eu comecei a trabalhar em Prosódia, durante o meu mestrado, e comecei a descobrir todos estes elementos, achei que, de facto, estava na área certa. Portanto, era precisamente aquilo que eu queria fazer. No meu mestrado, eu fiz um estudo mais fonético da Prosódia na interface com a Sintaxe. Depois, no meu doutoramento, desenvolvi um estudo mais fonológico da estrutura prosódica na interface também com a Sintaxe e outros aspetos semântico-discursivos. Isso levou-me a tentar perceber como é que os sistemas prosódicos variam entre línguas ou mesmo dentro da mesma língua. Eu lembro-me de que uma das experiências que fiz na altura e que achei muito reveladora, pelo menos para mim, mostrava que, quando eliminamos as palavras, retiramos as palavras do sinal de fala por filtragem, continuamos a percecionar propriedades cruciais das línguas: por exemplo, se eliminarmos as palavras a uma frase do Italiano e do Inglês e depois formos percecionar esses enunciados — nós continuamos a percecionar aquelas unidades como pertencendo a línguas diferentes apesar de já não estarem lá as palavras; mas, se fizermos o mesmo, por exemplo, a uma frase do Inglês e do Holandês, nós passamos a percecionar aqueles enunciados como podendo ser da mesma língua. A razão para isso está precisamente nas propriedades prosódicas. Quando fiz este tipo de experiência, isso mostrou-me, de facto, a força da Prosódia, a importância da Prosódia e como é crucial perceber, precisamente, como é que a Prosódia varia de língua para língua ou mesmo dentro da mesma língua. A seguir ao doutoramento, eu desenvolvi projetos e integrei várias equipas de investigação para estudar essa variação prosódica entre línguas e dentro da mesma língua. Mas, a grande razão que me levou a ainda hoje continuar a trabalhar nesta área tem a ver com o papel da Prosódia na aquisição da linguagem. Isso rapidamente se tornou o foco central da minha investigação, após o meu doutoramento. O facto de a Prosódia ser o primeiro aspeto da linguagem com que os seres humanos têm contacto, ainda no útero, dá-lhe um papel especial. O nosso sistema auditivo está funcional a partir, mais ou menos, das vinte e cinco semanas de gestação e, devido ao ambiente em que estamos, dentro do útero, as propriedades sonoras que o sistema auditivo consegue captar quais são? São precisamente as prosódicas. Portanto, é precisamente o primeiro aspeto da linguagem com que temos contacto — aquele que faz toda esta interface com diferentes outros aspetos da linguagem. Os bebés, a partir do momento em que saem do útero, são supersensíveis a aspetos prosódicos, fundamentalmente às questões de ritmo e de entoação das línguas. A Prosódia pode ser utilizada e pode dar pistas para facilitar a aprendizagem de outras áreas da linguagem, desde a estrutura silábica à aprendizagem das palavras e das categorias das palavras, desde a identificação de constituintes sintáticos nas frases até à ordem de palavras nas frases. Enfim, há toda uma série de aspetos para que a Prosódia pode dar pistas. Isto faz com que a aquisição da Prosódia seja fundamental para a aquisição da linguagem. E, também, para nós percebermos melhor, identificarmos e compreendermos melhor as perturbações da linguagem. Foram todas estas razões que me levaram a continuar a trabalhar nesta área.
Em 2010, a Senhora Professora fundou o renomado Lisbon Baby Lab. Podia, por favor, falar-nos um pouco sobre esta experiência? O que a motivou a criar este laboratório? Que desafios tem enfrentado?
Sim, claro, com todo o gosto. Se calhar, até podia dizer que o Baby Lab é um bocadinho a menina dos meus olhos. Ora, o Baby Lab foi criado na sequência do primeiro projeto que o Laboratório de Fonética e Fonologia teve na área da Aquisição da Linguagem. Esse primeiro projeto que tivemos foi precisamente sobre o desenvolvimento da Prosódia e foi esse projeto que nos deu o financiamento inicial para pensarmos em criar o Baby Lab. Mas os objetivos de criação do Baby Lab sempre foram, desde o início, muito mais abrangentes. Não era apenas para responder às necessidades daquele projeto em particular. Nós tínhamos a noção, logo desde o início, que era muito importante criarmos em Portugal uma estrutura de investigação que fosse tecnicamente habilitada para estudar o desenvolvimento da linguagem nos primeiros anos de vida, e que não existia, simplesmente. Isso iria possibilitar colocar a língua portuguesa no mapa dos estudos percetivos e de processamento da linguagem por bebés. Portanto, o Português nunca tinha sido estudado dessa perspetiva.
E podiam perguntar: “Mas por que é que era tão importante estudar como é que os bebés que estão a adquirir o Português o fazem?”, “Por que é que não nos basta saber como é que os bebés que estão a adquirir o Inglês o fazem, ou o Alemão, ou qualquer outra língua?”. É extremamente importante e por três razões fundamentais. A primeira tem a ver com o facto de todas as línguas serem diferentes, como vocês sabem. Se não fossem, não estávamos aqui a falar de várias línguas. Portanto, todas elas têm especificidades. Quando nós vamos olhar para os estudos feitos – não sei se vocês alguma vez fizeram esta análise – cerca de dois terços dos estudos em aquisição são sobre uma única língua, que eu imagino que vocês saibam qual é... O Inglês, precisamente. Globalmente, muito poucas línguas estão representadas. É claro que o Francês, o Alemão, o Holandês, o Italiano e outras línguas estão representadas, mas, quando nós vamos ver, temos sete mil e tal línguas no mundo, o que significa que muito poucas línguas estão representadas. Para além desta questão de todas as línguas deverem estar representadas, há algumas línguas que colocam desafios face ao conhecimento existente, porque essas línguas não se enquadram exatamente nos perfis das outras línguas que já foram estudadas e vão colocar algumas questões em relação ao conhecimento existente.
O Português não só tem as suas especificidades, como qualquer outra língua as terá, mas é uma dessas línguas que coloca desafios, porque o Português tem a particularidade, por exemplo, em relação à organização sonora da língua, de reunir propriedades de línguas que têm perfis completamente distintos. Por exemplo, o Português reúne propriedades semelhantes a línguas germânicas e a línguas românicas, na mesma língua. Tem aquilo que nós podemos dizer que é um perfil atípico dentro das línguas. Isto coloca questões muito interessantes, não só do ponto de vista tipológico, mas do ponto de vista da aquisição. Assim, estudar o Português contribui para perceber como as diferenças entre línguas podem modular todo o processo de aquisição da linguagem. Esta é a primeira razão. A segunda razão está relacionada com esta, pois como as línguas são todas diferentes umas das outras, nós não podemos simplesmente transferir o conhecimento que temos da língua A para a língua B. Isso não é possível. Hoje nós temos evidência clara de que existe uma importância muito grande da língua materna ou da língua ou línguas a que um bebé está exposto, para todo o desenvolvimento da linguagem, em particular, para os primeiros momentos a que chamamos o desenvolvimento inicial da linguagem. Assim, para conhecermos como se processa a aquisição do Português não há outra forma a não ser estudá-la diretamente.
Além disso, se queremos ter instrumentos que são adequados para medir, avaliar e fazer rastreio precoce no domínio da aquisição do Português, também temos de estudar a aquisição do Português. Não há outra forma de termos estes instrumentos. Esta é a segunda razão. A terceira razão tem a ver com a importância de fazer estes estudos do ponto de vista médico, do ponto de vista clínico e do ponto de vista social. Nós precisamos de ter informação sobre o que esperar do desenvolvimento típico, para conseguirmos precocemente identificar sinais de risco para afastamento desse desenvolvimento típico ou aquilo a que chamamos perturbações da linguagem e comunicação. Sem isto, nós não conseguimos promover intervenção precoce, não conseguimos permitir o diagnóstico precoce, não conseguimos dar elementos para informar ações e políticas na área clínica, na área educacional e na área social. Isto é tão mais importante que números internacionais apontam para que cerca de 19% ou 20% das crianças tenham problemas de linguagem aos sete anos de idade. É muita gente.
Sabemos que o diagnóstico é tipicamente feito entre os quatro e os seis anos, ou seja, quando há um enquadramento escolar de algum tipo e sabemos que esses problemas tendem a persistir durante a juventude e, nalguns casos, durante a idade adulta. Isso tem muitas consequências não só para o indivíduo, mas também para a sociedade e para a economia. Porque, muitas vezes, pensa-se: “Mas como é que se vai fazer rastreio precoce?”, “Como é que se faz intervenção precoce?”, “Isso não é muito caro?”. Ora, são muito mais caras depois as consequências, porque são consequências de médio a longo prazo. Por isso, é urgente que consigamos identificar esses casos e intervir o mais cedo possível. Só conseguimos fazer isso se estudarmos esses momentos iniciais e percebermos depois qual é a sua relação com o desenvolvimento subsequente. Por isso, no Baby Lab nós temos criado vários recursos, vários instrumentos para rastreio e avaliação do desenvolvimento da linguagem.
Eu acho que estas são as três grandes razões que determinaram a criação deste tipo de laboratório. Que desafios é que nós temos enfrentado? São tantos, mas destacaria principalmente dois grandes desafios. Um é aquilo a que eu talvez chame o desafio da multidisciplinaridade. Porque para fazer este tipo de estudo é necessário construir e trabalhar com uma equipa multidisciplinar que tenha a presença de várias áreas científicas, de várias especialidades, que nos permitam trazer avanços no conhecimento da aquisição e desenvolvimento da linguagem, tanto típico quanto atípico. O grande desafio aqui é construir pontes e uma linguagem comum entre todas estas áreas científicas e todas estas especialidades. Eu acho que, nesse domínio, nós temos tido algum sucesso.
Um outro tipo de desafio, aí talvez com menos sucesso, é o desafio do financiamento. O financiamento para a manutenção e a fixação das equipas. Nem é tanto o financiamento para os equipamentos, é mais o financiamento para as equipas, porque nós temos investigadores altamente especializados, investigadores em cuja formação temos vindo a investir, muitas vezes, ao longo de vários anos. No entanto, é muito difícil mantê-los, e neste caso têm que ser as instituições a alocar o necessário investimento em posições de investigação, ou de docente-investigador, de forma a que consigamos reter e fixar esses investigadores. Apesar dos muitos projetos financiados que nós temos tido e das contribuições científicas, algumas delas inovadoras, e do contributo do Baby Lab para a sociedade, temos essa grande dificuldade. Eu diria que esse é o maior desafio de todos.
Considerando os trabalhos que a Senhora Professora tem desenvolvido no Lisbon Baby Lab, que avanços nos estudos da aquisição do Português trazem novidades para os estudos da Aquisição da Linguagem de modo geral, em comparação com, por exemplo, o Inglês? Que desafios surgiram e que novos caminhos foram abertos?
Eu vou selecionar três exemplos para ilustrar o caráter inovador dos trabalhos desenvolvidos e a abertura de novos caminhos de investigação. Em 2014, nós publicámos na revista Infancy um estudo que foi o primeiro estudo que mostrou que, no primeiro ano de vida e logo aos cinco meses de idade, os bebés que estão expostos à língua portuguesa conseguem discriminar os padrões prosódicos de frases declarativas e de frases interrogativas em contextos de variabilidade fonética, que são contextos semelhantes aos que ocorrem naturalmente nas línguas. Isto ainda não tinha sido mostrado para nenhuma língua e o estudo fez alguma escola por causa disso e também porque esta capacidade de discriminação constitui um pré-requisito para a aquisição destes tipos frásicos. As afirmações e as perguntas são tipos de frases fundamentais para a comunicação e para a interação humanas. Por isso, o estudo desencadeou uma série de estudos comparativos, aplicando a mesma metodologia com bebés expostos a outras línguas, tendo-se concluído que esta capacidade não se verifica da mesma forma, por exemplo, em bebés expostos ao Inglês ou ao Alemão. Isto mostra que o papel da Prosódia é realmente importante e está a ser modelado pelas especificidades das línguas. Portanto, não podemos esperar os mesmos percursos de aquisição em todos os bebés simplesmente porque são seres humanos e porque são bebés. Este é um exemplo.
Um outro exemplo tem a ver com o estudo que nós publicámos em 2018, no Journal of Child Language, e que revelou o papel crucial da Prosódia no desenvolvimento das capacidades iniciais de segmentação de palavras num contínuo sonoro. Uma das coisas que os bebés têm de fazer para adquirirem uma língua é segmentar esse contínuo sonoro em unidades de diferentes tipos, entre as quais estão as palavras, que são unidades fundamentais das línguas. Nós verificámos que, a partir dos quatro meses de idade — e este foi o estudo que mostrou capacidades de segmentação mais precoces —, os bebés eram capazes de segmentar, neste caso, pseudopalavras que estivessem numa determinada posição prosódica. A Prosódia estava ali como facilitadora da segmentação de palavras. O estudo também mostrou que os bebés expostos ao Português não se comportavam da mesma maneira como os bebés expostos ao Inglês ou os bebés expostos ao Castelhano ou ao Francês, associando estas diferenças às diferentes propriedades rítmicas e entoacionais das línguas. Este estudo teve ainda a particularidade de ser um primeiro teste no domínio do processamento percetivo de uma hipótese mais geral sobre o desenvolvimento prosódico que nós depois continuámos a desenvolver e que tem sido uma hipótese citada em vários trabalhos internacionais de referência na área da aquisição e do processamento prosódicos. Portanto, digamos que foi um estudo inicial que deu muitos frutos e que abriu muitos caminhos de investigação. Eu disse que ia dar três exemplos e o último tem a ver com o facto de termos impulsionado a primeira coleção temática de estudos sobre os efeitos da pandemia de COVID-19 na aquisição e desenvolvimento da linguagem. Foi uma coleção publicada entre 2021 e 2023 na revista Frontiers in Psychology, e que já conta com mais de 50 mil visualizações. Portanto, tem tido muita procura e muito impacto. Nessa coleção, nós publicámos um trabalho sobre o desenvolvimento da capacidade de segmentação de palavras em bebés nascidos durante a pandemia e esse trabalho permitiu-nos ver que, ao contrário dos bebés pré-pandemia, os bebés nascidos durante a pandemia tinham dificuldades de segmentação de palavras aos oito/nove meses de idade. Nesse momento, dado que a segmentação de palavras se relaciona com vários outros aspetos de desenvolvimento da linguagem, nós colocámos a hipótese nesse estudo de o desenvolvimento da linguagem poder estar globalmente afetado nestes bebés. Então, este estudo abriu a porta para o desenvolvimento de um estudo longitudinal. Nós fomos seguir esses bebés, que na altura tinham entre oito e nove meses, até aos trinta meses de idade, num estudo longitudinal que publicámos em 2024 e confirmámos efetivamente essa hipótese, pois verificámos que os mesmos bebés que tinham dificuldades na segmentação de palavras aos oito meses mostraram dificuldades depois na aprendizagem de palavras aos vinte e quatro meses e demonstraram atrasos no desenvolvimento lexical até aos trinta meses de idade. Portanto, o que é que eu quero mostrar-vos aqui? Como um estudo leva a outro e vai abrindo vários caminhos. Ao mesmo tempo, neste momento, já temos um conjunto vastíssimo de estudos sobre os efeitos da pandemia no desenvolvimento da linguagem, estudos que abarcam vários países e várias línguas e que apresentam resultados muito variados. Tudo isto vai contribuir para nós percebermos que fatores estão por detrás destes efeitos. Isso vai ser muito importante para ajustar medidas políticas e sociais ou medidas na área da Educação e da Saúde que sejam mais ajustadas em situações equivalentes e que nós não queremos que aconteçam muito rapidamente. Mas, pelo menos, podemos estar equipados para tomarmos melhores decisões no futuro, se vierem a acontecer situações como as da pandemia da COVID.
Sabemos que, a par da pesquisa no Lisbon Baby Lab, realiza o seu estudo em colaboração com outras áreas científicas, como a Saúde e a Educação. Deste modo, como é que estas sinergias aperfeiçoaram o seu conhecimento relativamente ao tema da Aquisição da Linguagem? Que frutos nasceram destas colaborações até agora e quais são as expectativas para futuras parcerias nessa intersecção entre a Linguística, a Neurociência e a Pediatria?
Excelente pergunta! Vocês captaram muito bem que o trabalho que nós desenvolvemos é crucialmente multi e interdisciplinar. Que frutos é que resultam desse trabalho? Como é que isso vem aperfeiçoar o conhecimento que nós temos? Os frutos são muitíssimos: por exemplo, os instrumentos de rastreio e avaliação da linguagem que temos desenvolvido não teriam sido possíveis se não tivéssemos as colaborações com todas estas áreas, designadamente a área da Psicologia, a área da Pediatria e a área da Informática. As colaborações com os diversos setores na área da Saúde também foram fundamentais para todos os projetos. Temos tido vários em que temos estudado o desenvolvimento atípico da linguagem e em que temos trabalhado com estas populações. Como, por exemplo, no caso de bebés de risco para perturbação da linguagem, sejam bebés com risco genético, porque têm um familiar próximo diagnosticado com uma perturbação que afeta a linguagem, sejam bebés prematuros, sejam bebés de baixo peso à nascença. Os estudos comparativos que temos feito entre bebés de baixo risco (os chamados bebés de desenvolvimento típico), os bebés de risco e os bebés que já são diagnosticados à partida, isto é, que já nascem com uma condição que sabemos que vai afetar a linguagem, como o caso dos bebés com Trissomia 21, são muito importantes para conseguirmos estabelecer curvas de desenvolvimento para estes diferentes grupos e assim definirmos os aspetos que podem servir como marcadores precoces de desenvolvimento de perturbações da linguagem. Esse é um objetivo muito importante e é um objetivo que não conseguiríamos de maneira nenhuma atingir se não tivéssemos todas estas colaborações ativas. Nós, desde o início, estabelecemos estas colaborações com a área da Saúde e da Educação, como vocês referiram, e mais recentemente estamos a estender estas parcerias incluindo a Odontopediatria e, para além da Neurolinguística, que nos tem acompanhado desde o início, as Neurociências e as Ciências Biomédicas. A Odontopediatria é importante para avançar no estudo das perturbações oro-motoras e da forma como elas afetam não só a produção, mas também a perceção da linguagem e, consequentemente, o desenvolvimento da linguagem. A parceria com as Neurociências e as Ciências Biomédicas é crucial para nós percebermos as bases neurobiológicas do desenvolvimento inicial da linguagem. Estas áreas que eu vos referi são áreas novas, mas com uma atividade fervilhante neste momento e que prometem um desenvolvimento exponencial nos próximos anos. Portanto, são colaborações fundamentais.
Sabemos que é também fundadora do projeto Horizonte 21, no qual colabora com vários investigadores tendo em vista o estudo do papel que determinados indícios manifestados precocemente no desenvolvimento da linguagem têm enquanto possíveis preditores da capacidade linguística ulterior de produzir e compreender enunciados, atendendo, em particular, aos casos de perturbações linguísticas associadas ao Síndrome de Down. Nesse sentido, quais foram as motivações que impulsionaram a criação deste projeto e o que nos pode contar sobre a investigação realizada até ao momento?
É um projeto muito importante. Foi talvez um dos projetos mais importantes ligado à área clínica que nós desenvolvemos. Esse projeto, Horizonte 21, foi o primeiro a nível nacional e um dos poucos no mundo a focar-se no estudo do desenvolvimento da linguagem em bebés com Síndrome de Down ou Trissomia 21. Na verdade, a ideia do projeto surgiu quando fomos fazer uma apresentação de um outro projeto, que tínhamos na altura, à equipa de neurodesenvolvimento e de pediatria do Hospital Santa Maria. Fomos convidados para ir lá falar desse outro projeto e um pediatra do neurodesenvolvimento que estava na plateia perguntou-nos diretamente: “Então, e os bebés com Trissomia 21?”. Nós nunca tínhamos pensado em estudar essa população e foi essa pergunta que levou a este projeto, que foi desenvolvido em parceria com esse pediatra e com a equipa dele. A grande motivação para a criação do projeto foi precisamente o facto de, por um lado, se saber que as dificuldades de linguagem, tanto ao nível da produção como da compreensão, são uma característica prevalente nos indivíduos com Trissomia 21 e que é uma característica fortemente limitadora da sua educação e do seu funcionamento em sociedade. Por outro lado, não existirem praticamente estudos sobre o desenvolvimento inicial da linguagem na Trissomia 21. Então pensámos: “Nós temos mesmo de fazer isto”, porque se nós conseguirmos determinar, logo desde o início, quais são as áreas fortes e as áreas fracas no desenvolvimento da linguagem nos bebés com esta condição, nós teremos informação que é crucial para desenhar intervenções precoces para promover a aquisição e o desenvolvimento da linguagem neste grupo clínico. Portanto, foi isso que nos motivou.
O que é que nós já descobrimos? A investigação que realizámos mostrou que os bebés com Trissomia 21 não segmentam palavras no contínuo sonoro, não discriminam padrões acentuais, nem aprendem novas palavras, seguindo o mesmo ritmo e o mesmo percurso de desenvolvimento dos bebés de desenvolvimento típico e que também apresentam diferenças em relação aos bebés de risco. Não são só diferentes dos bebés de desenvolvimento típico; em alguns aspetos também são diferentes dos bebés de risco. Todavia, os bebés com Trissomia 21 mostraram as mesmas capacidades iniciais de discriminação da entoação que estão presentes em bebés de desenvolvimento típico. Quando obtivemos este resultado ficámos muito contentes, pois pensámos que identificámos uma área forte nestes bebés, que poderá ser utilizada em contexto de intervenção como estratégia para trabalhar outras áreas menos fortes. Os estudos também mostraram que os bebés com Trissomia 21 têm padrões de atenção visual e de processamento audiovisual das pistas linguísticas diferentes dos bebés de desenvolvimento típico. Isto sugere que esta é uma outra área que poderá ser trabalhada em contexto de intervenção para promover as suas competências linguísticas; ou seja, trabalhar exatamente o foco da atenção para pistas audiovisuais linguísticas. Um outro resultado que nós achamos bastante importante na investigação que fizemos neste projeto foi a disponibilização de valores de referência para o CDI (Communicative Development Inventories).
O CDI é um instrumento de avaliação do desenvolvimento da linguagem, tipicamente entre os oito e os trinta meses de idade e que, na versão curta, está assente no desenvolvimento de competências lexicais, quer de compreensão, quer de produção. Como resultado da investigação neste projeto, nós disponibilizámos valores de referência específicos para bebés com Trissomia 21. Assim, em vez dos clínicos e dos profissionais de Saúde em geral, que estão a trabalhar com estes bebés, estarem sistematicamente a compará-los com bebés de desenvolvimento típico, o que é uma comparação desajustada, a ideia é fazer-se aquilo que se faz com os bebés de desenvolvimento típico. Quando nós vamos ver como está o desenvolvimento da linguagem de um bebé de desenvolvimento típico, num determinado momento do seu desenvolvimento, nós vamos compará-lo com os seus pares, isto é, com os outros bebés de desenvolvimento típico. Portanto, aqui a ideia é exatamente a mesma: valores de referência para os bebés com Trissomia 21. Assim, o bebé com Trissomia 21 está a ser comparado com os outros bebés que também têm Trissomia 21. O instrumento e os valores de referência já estão a ser utilizados há vários anos pelos profissionais na área da Saúde e da Educação que trabalham com estes bebés. Acho que esse é um dos resultados de que nós mais nos orgulhamos.
Desempenha, desde 2002, o importante cargo de editora-chefe do Journal of Portuguese Linguistics. Partindo da sua experiência até ao momento, como avalia o processo de coordenar um projeto como este?
Vocês, de facto, prepararam-se muitíssimo bem, porque a par do Baby Lab, eu diria que o Journal of Portuguese Linguistics, abreviadamente JPL, é um dos projetos dos quais eu mais me orgulho. Acho que é um projeto muito importante e ter participado na criação da primeira revista internacional sobre a Linguística portuguesa e ter tido a honra e a responsabilidade de a dirigir tem sido um desafio muito, muito gratificante. É importante dizer que o JPL foi sempre, desde o início, um projeto de equipa, aliás, tal como o Baby Lab. De facto, a ideia foi criar uma revista independente de qualquer instituição, portanto, independente da universidade, da faculdade e do centro de investigação. Tem um comité científico internacional próprio, segue todos os procedimentos das grandes revistas internacionais de referência no campo da Linguística, mas tem esta especificidade que é ser dedicada à publicação de trabalhos de investigação de grande qualidade no domínio da Linguística do Português. Portanto, a ideia foi criar este perfil de revista e, desde o início, trabalhámos sempre em equipa para atingirmos este objetivo. Entre 2002, quando criámos a revista, e 2015, a revista só existia em formato de papel, no modelo clássico de subscrição.
A partir de 2015, nós passámos para formato eletrónico, em acesso aberto, e fomos uma das quatro revistas que esteve ligada à Fundação Internacional LingOA (Linguistics in Open Access). Esta Fundação lançou este projeto, Linguistics in Open Access, que defende o acesso livre no chamado formato diamante, ou seja, não há custos para as publicações. As publicações são acessíveis a todos e não há custos nem para os autores, nem para os leitores. Eu acho que a revista tem tido sucesso, apesar de estar a falar em causa própria, e acho que esse sucesso se reflete nos 23 volumes que já foram publicados. Creio que são mais de 240 artigos, que têm como autores, na sua grande maioria, investigadores e cientistas não portugueses. Ainda na fase em papel, a revista foi reconhecida pelo European Research Index for Humanities, como sendo uma revista de categoria internacional, e presentemente está indexada na Scopus no Quartil 2, o que achamos que é bastante bom. Mas, melhor do que tudo isto, é a aceitação da revista pelos autores que submetem os seus trabalhos, pelos leitores que os procuram e pelo facto de estarmos integrados não só na LingOA, mas também na Open Library of Humanities, que é um grande projeto de acesso aberto. E, se me permitem, eu aproveitava este momento para agradecer a todos os que apoiaram a criação da revista, em particular à professora Inês Duarte, que esteve na génese da criação da revista, a todos os membros da equipa da revista, incluindo a equipa editorial, pelo seu excelente trabalho ao longo dos anos, porque sem isso não tínhamos revista.
No artigo “Development and validation of a parental report of toddlers’ prosodic skills”, que publicou juntamente com outros investigadores, descreve o desenvolvimento e legitimação da ferramenta de recolha de dados designada de Proso-Quest, que visa avaliar o desenvolvimento prosódico precoce de crianças em Português Europeu. De facto, a elaboração deste instrumento remonta a 2012, no entanto, a sua aplicabilidade é evidentemente atual. Nesse sentido, gostaríamos de saber um pouco sobre o processo de elaboração do Proso-Quest. Além disso, de que forma podemos relacionar a aplicação desta ferramenta com outras áreas do desenvolvimento gramatical?
Esta é uma pergunta bastante específica. Agradeço terem lido o artigo. Sim, é verdade, o desenvolvimento do instrumento Proso-Quest remonta a 2012. Quando nós começámos a estudar o papel da Prosódia na aquisição da linguagem e o próprio desenvolvimento prosódico, nós rapidamente percebemos que era fundamental dispor de um instrumento que possibilitasse a avaliação da Prosódia o mais cedo possível no desenvolvimento.
A criação deste instrumento, o Proso-Quest, responde diretamente a essa necessidade. Portanto, não existia esse instrumento. Aliás, importa referir que o português é a primeira língua a dispor de um instrumento deste género, que permite a avaliação do desenvolvimento prosódico nos primeiros anos de vida. O desenvolvimento do instrumento passou por muitas fases, demorou muito tempo, muitos anos. Desde a seleção dos itens a incluir, as várias etapas de feedback dos especialistas, dos pais que participaram na aplicação do instrumento, depois o estudo piloto que foi realizado, a revisão do instrumento, até o estudo final de validação, que foi finalmente publicado nesse artigo em 2023, que saiu online e que inclui dados da referência para crianças de desenvolvimento típico que estão a adquirir o português. Presentemente, o instrumento já foi aplicado a mais de 700 crianças, diria eu, incluindo crianças com desenvolvimento típico e atípico.
A respeito da relação da aplicação desta ferramenta com outras áreas do desenvolvimento gramatical, o que os estudos nos têm mostrado até agora, e esse é um resultado que tem sido replicado, é que a aquisição precoce de competências prosódicas promove scores superiores de desenvolvimento lexical. Isto significa que quanto mais cedo determinadas competências prosódicas são adquiridas, maior é o léxico que os bebés conseguem desenvolver. Mas temos toda uma série de outras áreas para explorar e temos dados para isso, mas esses estudos ainda não estão feitos.
Recentemente, no Jornal Público, a Senhora Professora publicou a reportagem intitulada “Cantigas e histórias para travar os atrasos na linguagem dos bebés”, na qual alerta para o facto de os bebés nascidos em contexto pandemia COVID-19 apresentarem dificuldades relacionadas com o desenvolvimento da consciência fonológica e da capacidade de leitura de palavras. Deste modo, desenvolveu, juntamente com Marisa Filipe, um plano de intervenção tendo em vista a promoção das competências de linguagem por meio da música. Tendo em conta os dados conhecidos até ao momento, que balanço faz deste projeto-piloto? De que forma avalia o papel dos educadores/docentes no diagnóstico e mitigação destas dificuldades? Por fim, que outros esforços poderão ser tomados de modo a apaziguar os impactos a longo prazo nas competências concernentes à literacia das crianças?
Este é um projeto muito recente. É um projeto-piloto que visa testar a aplicabilidade de uma intervenção prosódica para promover as competências de linguagem através da música, num contexto muito específico, que é o contexto em creche. O que nós fizemos foi desenvolver um plano de intervenção sistemática que tem um guião detalhado, que tem sugestões de atividades ajustadas às idades dos bebés, neste caso entre os seis meses e os três anos. Portanto, estamos a intervir antes do pré-escolar. A nossa ideia é que a intervenção e todas as atividades possam ser aplicadas diretamente pelas educadoras. Não é necessário vir ninguém de fora para realizar a intervenção. Nós trabalhámos em equipa, uma vez mais, juntamente com as educadoras. Fizemos várias visitas à escola, assistimos a várias fases de implementação da intervenção, verificámos vídeos que as educadoras periodicamente nos enviavam. Portanto, fomos sempre acompanhando todo o processo. Neste momento, a fase de intervenção do projeto-piloto já foi concluída e o que nós estamos a fazer é analisar os resultados do projeto. Ainda não temos os resultados finais, mas podemos desde já dizer que a opinião das educadoras foi muito positiva, tanto em termos de satisfação relativamente à intervenção, pois conseguiram efetivamente aplicar a intervenção, como em relação à perceção que elas têm de que as crianças beneficiaram da intervenção.
No ano seguinte, as crianças mostraram-se mais desenvolvidas do ponto de vista linguístico, apresentaram um léxico mais diversificado, começaram a construir frases mais cedo, a comunicar e interagir mais. Esta é uma perceção subjetiva, naturalmente, mas é a perceção das educadoras. Nós achamos que o papel dos educadores é fundamental. Aliás, foram as educadoras da escola de São Vicente, em Alcabideche, que contactaram a nossa equipa. Isto mostra como o papel dos educadores é fundamental na identificação de dificuldades da linguagem nas crianças. Elas estão, por assim dizer, com as mãos na massa, estão no quotidiano com as crianças e ficaram preocupadas. Contactaram-nos, manifestando as suas preocupações, e, assim, abriram a porta à implementação deste projeto-piloto. Portanto, foram elas que vieram ter connosco. Acho que isso é um aspeto muito importante.
Como é que eu avalio o papel dos educadores no diagnóstico e mitigação destas dificuldades? Avalio muito bem. Tem de ser mesmo assim. Agora, que mais é que nós podemos fazer? Que outros esforços podemos desenvolver? Eu tive oportunidade de dizer ao jornalista, na entrevista ao Público, que seria muito importante fazer um esforço no sentido de um rastreio, se possível, a nível nacional. Sei que isto é quase idílico, mas seria mesmo muito importante para nós percebermos qual é a real dimensão das dificuldades de linguagem que as crianças apresentam. Os estudos indicam que os efeitos da pandemia perduram no pós-pandemia. Eu acho que saber exatamente qual é a dimensão do problema seria bastante útil, mas se não conseguirmos fazer isso, pelo menos, podemos propor intervenções que sejam gerais e que possam ser aplicadas em creches e jardins de infância, à generalidade das crianças, e que sejam intervenções integradas nas suas atividades regulares, ou seja, não é preciso um esforço adicional, não é preciso contratar mais pessoal para isso, não é preciso mais horas. Nós achamos que esta seria uma boa forma de mitigar o impacto das dificuldades existentes e de promover as competências linguísticas no presente e no futuro, porque nós sabemos que há todo um conjunto de competências preditoras de competências de literacia emergente mais tarde no pré-escolar e por aí fora. Se pudéssemos falar com alguém com capacidade de decisão central a nível político, seria este o meu conselho. Temos trabalhado no sentido de tentarmos construir intervenções simples, que possam ter esta aplicabilidade, sem onerar o Estado e as escolas, e que possam ter alguma vantagem para o desenvolvimento da linguagem das crianças.
Atualmente, quais considera serem as questões mais complexas dentro do domínio da Aquisição da Linguagem? Que problemática a Senhora Professora gostaria que fosse mais profundamente investigada neste âmbito?
Podemos falar de muitas questões, mas eu continuo a achar que a questão mais complexa continua a ser a questão básica e fundamental de como o bebé processa o input linguístico que é transiente e rápido. É algo instantâneo, é rápido, passa depressa, é multimodal, não é só som. É um conjunto de pistas muito complexas. Então, como é que o bebé processa isto, extraindo as pistas relevantes para a aquisição de uma ou mais línguas? Para mim, essa continua a ser a grande questão.
Uma resposta cabal a esta questão implica muita coisa. Implica conhecermos os mecanismos envolvidos neste processo em cada momento do desenvolvimento e nomeadamente implica conhecermos as suas bases neurobiológicas e também sensório-motoras. Lá está, a tal multi e interdisciplinaridade de que falámos. Conhecer estes mecanismos irá também permitir perceber melhor o que motiva as diferentes perturbações que afetam a linguagem. Não se trata de descrever as perturbações, mas perceber o que levou a que aquela perturbação exista e desenhar intervenções para as mitigar e formas de as prevenir. Temos muito trabalho pela frente para conseguir fazer isto, mas acho que estamos na altura certa. Esta é a melhor altura de todas, científica e tecnologicamente, para colocarmos estas questões e tentarmos responder a elas. Portanto, se quiserem investigar nesta área, trabalho não falta.
A contribuição da Senhora Professora para a comunidade científica tem sido significativa, de tal modo que, segundo o Index Científico AD de 2024, é atualmente uma das mais influentes cientistas no âmbito da Linguística em Portugal. Nesse sentido, revendo todo o seu percurso, quais considera terem sido os momentos cruciais na sua carreira?
São muitos anos, e é muito difícil identificar e isolar alguns momentos, mas eu acho que consigo destacar três. A minha paixão pela Linguística e pela Fonética aconteceu logo muito cedo, no primeiro ano da licenciatura e depois no segundo cimentou-se. Isso aconteceu muito graças ao entusiasmo de professores muito bons que eu tive. Na verdade, para mim, a minha carreira começou naquele momento e não no momento em que comecei a ser investigadora formalmente. Acho que começou mesmo ali, logo no início, mas vamos aos momentos cruciais. O primeiro momento que eu destaco é o período que passei em Amesterdão, durante o meu doutoramento, com financiamento Erasmus. Devo esse Erasmus, entre muitas outras coisas essenciais, a uma das minhas orientadoras que foi a Professora Raquel Delgado Martins. Portanto, aproveito a oportunidade para lhe agradecer isso e tudo o resto. Nesse período, em que eu estive em Amesterdão, eu percebi como a investigação que estava a fazer era tão bem recebida por nomes grandes da área científica da Fonética, Fonologia e Prosódia com quem tive oportunidade de contactar muito proximamente, como os Professores Bob Ladd e Carlos Gussenhoven. Nesse período, um outro aspeto que foi importante foi eu ter percebido que, ao contrário do que eu pensava inicialmente, o que eu queria mesmo era ficar em Portugal. Anteriormente, eu pensava que queria fazer investigação lá fora.
Mas, quando estive em Amesterdão, percebi que queria ficar em Portugal e contribuir para a formação de alunos e jovens investigadores em Portugal. Por isso, eu destaco este momento de Amesterdão, que foi bastante importante para o que aconteceu a seguir. Depois, o segundo momento que eu destaco é o da reativação do Laboratório de Fonética, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Isto aconteceu em 2007. O Laboratório foi criado em 1971 e foi dirigido pela Professora Raquel Delgado Martins até 2001, uma pioneira em muitas áreas, como eu tive oportunidade de vos dizer há pouco, incluindo a Prosódia, a Aquisição, a Língua Gestual Portuguesa. Com a saída da professora Raquel, o Laboratório adormeceu. Então, esta reativação em 2007 foi um trabalho conjunto com os Professores Fernando Martins e Marina Vigário e que permitiu o desenvolvimento de vários projetos importantes que contribuíram para a formação de muitos jovens investigadores. Hoje o Laboratório, agora chamado Laboratório de Fonética e Fonologia e que está integrado no CLUL, o Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, é o único, em contexto nacional, que está ativo e temos o grande orgulho e responsabilidade de preservar e dar a conhecer o legado de investigação em Fonética com muitas décadas, que está documentado no Núcleo Museológico que foi inaugurado em 2020, durante a pandemia. Portanto, destaco esse momento de reativação do Laboratório, pois acho que foi muito importante.
O terceiro momento que destaco é o da criação do BabyLab, que é um laboratório filho do Laboratório de Fonética e que permitiu colocar a língua portuguesa e Portugal no mapa dos estudos experimentais de perceção e de processamento da linguagem nos primeiros anos de vida e que tem atraído muitos estudantes e investigadores. Nós recebemos estudantes de licenciatura, estudantes que querem vir experimentar, fazer investigação, ver como a investigação é feita. Também tem atraído vários investigadores internacionais. Sem o BabyLab, não teria sido possível desenvolver a investigação que conduziu ao Prémio Maria Teresa Palha, em 2022, pelo contributo para o conhecimento do neurodesenvolvimento da linguagem na Trissomia 21. Isso é algo de que a equipa do BabyLab se orgulha muito.
Enquanto investigadora, que conselhos daria aos estudantes e novos linguistas que pretendem seguir uma carreira na Linguística, em particular nas áreas da Fonética e da Fonologia?
Penso que as áreas da Fonética e da Fonologia têm talvez uma dimensão particular, que é o trabalho com o som, com as pistas multimodais, que pode ser teórico, mas que pode também ser experimental, isto é, pode juntar as duas vertentes. Eu diria o seguinte aos estudantes e aos novos linguistas: que se integrem numa equipa de investigação e num projeto de investigação. Eu acho que fazer ciência é cada vez mais um trabalho de equipa e o nosso contributo individual, por mais importante que seja, é uma peça muito pequena que, juntamente com outras, fará um sentido maior no âmbito de um projeto que seja mais global e que fará avançar o conhecimento. Assim, podemos fazer ciência de uma forma mais eficaz e sustentável.
Nós não podemos, nem devemos, andar todos a reescrever o que os outros escreveram, a fazer reescrita. Tem que haver uma conceção mais ampla, temos que nos articular em equipa e trabalhar, dando o nosso contributo, a nossa peça, para o projeto que será, inevitavelmente, maior do que nós. Eu nasci em África e há um provérbio africano que diz uma coisa em que acredito profundamente: “Se queremos ir depressa, vamos sozinhos. Se queremos ir longe, vamos juntos.” Em ciência não queremos ir depressa, queremos ir longe e para fazer isso nós temos de ir juntos. Um outro conselho que eu daria aos estudantes e aos novos linguistas é que nunca percam a humildade e a capacidade de se deslumbrar perante as ideias dos seus mestres, dos seus pares e dos seus alunos, porque nós não temos que competir nem com os nossos mestres, nem com os nossos pares, colegas ou alunos, nem os nossos alunos têm de competir connosco. Nós temos é de colaborar e temos de estar abertos e alimentar esta capacidade de nos deslumbrarmos. Quando ouvimos uma boa ideia, devemos pensar: “Porque é que eu não pensei nisto? Que ideia magnífica! Vamos ajudar a que ela vá para a frente! Vamos contribuir!”. Eu acho que é importante cultivar, sempre, o entusiasmo pelo conhecimento e pela colaboração e partilha do conhecimento. Acho que se nós fizermos isto estamos num bom caminho, estamos a dar, efetivamente, o nosso contributo para o desenvolvimento da ciência, neste caso no domínio da Linguística.
Antes de terminarmos esta entrevista, gostaríamos de lhe colocar uma última questão. Sabemos que o seu trabalho tem sido, até agora, dedicado à Linguística. Contudo, se não tivesse escolhido ser linguista, o que gostaria de estar agora a fazer?
Em jovem, eu pensei que poderia vir a ser escritora e artista. Nunca pensei que viria a ser linguista, não fazia parte dos meus horizontes. Quando entrei na faculdade, eu deixei a escrita literária da juventude e passei à escrita científica. Também deixei a música e passei a ser ouvinte. Adoro música, mas sou só ouvinte. Uma coisa que eu nunca deixei foi a fotografia, é um hobby que tenho e que vou mantendo. Se eu não fosse linguista, eu estaria, talvez, a trabalhar em alguma destas áreas ou então estaria a fazer ciência, também, em áreas da Medicina. Na verdade, muito cedo no secundário, nós temos que escolher entre as Humanidades e as Ciências da Saúde e outras áreas, e eu escolhi as Humanidades e essa porta da Saúde e da Medicina fechou-se logo no momento em que eu escolhi as Humanidades.
Por exemplo, a minha filha teve uma educação diferente, numa escola internacional, em que até ao momento de entrar na universidade estão abertas as várias portas, ou seja, pode escolher áreas da Saúde, Humanidades, Artes... O sistema de ensino português não é assim e eu sempre estive indecisa entre as Humanidades, na Literatura, no caso de ser escritora ou artista, e a Medicina, uma área científica que me fascinava. Mas, escolhi uma e fiquei desse lado. Então, estaria a trabalhar numa destas áreas ou a fazer ciência, numa outra área, que seria a da Medicina. Na verdade, eu acho que estas coisas não são assim tão distintas, porque a beleza da arte e a beleza de uma descoberta científica, para mim, são coisas muito próximas. Eu não sei se vocês já olharam para um espectrograma, os monocromáticos e policromáticos, e pensaram: “Eu podia fazer um quadro com isto! Eu podia transformar isto numa obra de arte!”.
Por exemplo, se estiverem a trabalhar com um eye tracker e fizerem os chamados heatmaps, um mapa de calor da distribuição dos padrões do olhar, vão ter a mesma sensação: “Isto podia ser trabalhado para ser uma obra de arte!”. Ou se olharem para as imagens dos padrões de ativação cerebral – outra obra de arte. Qualquer uma destas formas, na verdade, constitui representações artísticas que são lindíssimas e que têm a sua origem na ciência. Portanto, não sei se vou transformar ciência em arte, não sei o que vou fazer quando deixar de ser linguista e deixar de ser cientista, se alguma vez isso acontecer, mas será por aí.

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