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Entrevista: Prof. Dra. Cristina Flores (Universidade do Minho)


Entrevista publicada no Volume 8 nº 2 (2019) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP (<https://ojs.letras.up.pt/index.php/elingUP/article/view/6785/6254>).


Cristina Flores é Professora Associada do Departamento de Estudos Germanísticos e Eslavos do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho. O seu trabalho incide sobre temas como Bilinguismo, Aquisição da Linguagem e Erosão Linguística. A atenção que tem dedicado ao estudo da competência linguística de falantes lusodescendentes em contexto alemão e falantes bilingues de português-alemão levou a que, desde 2008, tenha coordenado e participado em vários projetos de investigação centrados no estudo da competência linguística de falantes monolingues e bilingues.

Cristina Flores conta já com várias publicações em revistas internacionais, como Journal of Child Language, International Journal of Bilingualism, Linguistic Approaches to Bilingualism, Bilingualism. Language and Cognition, entre outras. Assume o cargo de Diretora do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (CEHUM) desde junho de 2019 e é também editora associada da revista Linguistic Approaches to Bilingualism, bem como coeditora da série Language Development e da revista REAL.

A presente entrevista foi redigida pelas estudantes Beatriz Martins, Renata Rodrigues, Ana Rita Cunha, Mariana Silva e Violeta Magalhães e foi conduzida pelas mesmas estudantes no dia 4 de dezembro de 2019 no Centro de Estudos Humanísticos da UMinho. Ao longo da entrevista, foram tratados vários aspetos relacionados com as áreas de estudo da Professora Doutora Cristina Flores, bem como com alguns dos tópicos mais atuais da discussão em Linguística Aplicada. Esperamos que o texto seja do interesse dos leitores e que desperte noutros o mesmo entusiasmo que experienciámos. Da parte das entrevistadoras, foi um prazer e uma honra imensa redigir e conduzir esta entrevista. Por isso, agradecemos à Professora Doutora Cristina Flores pelo momento de aprendizagem e partilha de conhecimento que nos proporcionou.

Antes de mais, desejamos cumprimentar a Senhora Professora e agradecer ter aceitado o nosso convite. Sabemos que a Senhora Professora é falante bilingue de português e alemão, o que nos leva a intuir o porquê de ter decidido enveredar pelo caminho da Psicolinguística, concretamente pela área da Aquisição da Linguagem e Bilinguismo. Ainda assim, gostaríamos de perguntar o que realmente a cativou, levando-a a iniciar investigação nesta área.

Por acaso, o que me cativou não foi o facto de ser bilingue, mas sim o facto de conhecer muitos falantes bilingues. Quando comecei a dar aulas na Universidade do Minho, há precisamente 20 anos, contactei com muitos estudantes que tinham crescido na Alemanha, mas que apresentavam diferenças quanto à sua competência linguística em alemão. Esse foi o motivo inicial, isto é, o facto de falantes que cresceram com duas línguas evidenciarem áreas problemáticas, que aparentemente resistiram à aquisição numa das línguas. Mais tarde, vim a perceber que essa resistência era, na verdade, uma perda, o que me levou a estudar o fenómeno da erosão. O que me cativou foi, portanto, a ideia de que, mesmo adquirindo duas línguas maternas na infância, não é garantido que na fase adulta se domine essas duas línguas como falante nativo.



Na sua experiência pessoal, como falante bilingue, provavelmente já terá tido contacto com o fenómeno de code-switching. Nesse sentido, diria que quando alterna de língua é com uma intenção comunicativa ou depende do tema?

Há três motivos para o code-switching. Em primeiro lugar, o recurso a esse fenómeno como estratégia de comunicação, isto é, quando orientamos o discurso para determinado tema que conhecemos e experienciámos numa determinada língua, usamos essa língua. Um segundo motivo passa também por uma estratégia de comunicação, mas relacionada com o interlocutor. Imaginemos que o interlocutor tem a mesma vivência do falante bilingue. Poderá haver uma tendência para fazer o code-switching de forma a realçar esta ligação entre os dois. Poder-se-ia optar por falar apenas uma das línguas, mas, havendo essa experiência comum de bilinguismo, o code-switching é uma estratégia natural de comunicação entre falantes.

Em terceiro lugar, existe o motivo da competência, isto é, quando o code-switching ocorre para resolver problemas de acesso lexical. Um falante monolingue pode recorrer a um sinónimo ou a uma paráfrase quando não se lembra de uma palavra. Já o falante bilingue tem a possibilidade de recorrer à mesma palavra na outra língua. Por vezes, essa dificuldade pode prender-se, não exatamente com a palavra, mas com outras características associadas ao léxico, como o género. Imaginemos, por exemplo, que eu sei determinada palavra em alemão, mas já não sei se é masculina, neutra ou feminina. Nesse momento, enquanto falante bilingue, posso optar por não arriscar e verbalizar a palavra em português. São, portanto, três os motivos que, penso, explicam o fenómeno do code-switching: o tema, o interlocutor e as dificuldades de acesso lexical.

Para além disso, há também o caso de comunidades que vivem em situação de contacto linguístico. Trata-se de um fenómeno social ou de mudança linguística que consiste na criação de novas palavras que passam a fazer parte do léxico de determinada comunidade por via do contacto de duas línguas distintas. Como cresci em Hamburgo, conheço muitos exemplos como aparcar (que significa estacionar, do alemão parken) ou fazer um termino (que significa marcar uma consulta médica, do alemão ein Termin machen). Este fenómeno é muito comum em comunidades emigrantes, distingue-se, no entanto, da alternância de códigos (code-switching).



Ainda em relação ao code-switching, considera que esse fenómeno é exclusivo de falantes bilingues ou, por exemplo, um falante que aprende uma língua estrangeira também pode recorrer ao mesmo fenómeno? E, se puder, será que está relacionado com o nível de proficiência em L2 do falante?

Ocorre imenso nos adolescentes com o inglês! Eles fazem imenso code-switching, sobretudo jovens que aprendem inglês em sala de aula e depois aprofundam esses conhecimentos através do contacto com a língua nas redes sociais e nos media. Falantes de uma língua segunda que aprendem essa língua apenas na sala de aula, mas não têm contacto com a língua fora desse contexto de instrução, recorrem muito menos ao code-switching. Logo, esse fenómeno está ligado a um determinado nível de proficiência.



Tendo em conta as várias e contrastantes definições de bilinguismo, qual é para a Senhora Professora a melhor forma de esclarecer e classificar este conceito?

Eu creio que não há uma definição exata de bilinguismo. Existem vários critérios que podem ser usados e que dependem muito do autor e da área de estudo. Um critério é a idade de aquisição, que é, aliás, o critério que eu assumo, pois creio que é o que faz mais sentido no tipo de investigação que conduzo. Portanto, se as línguas são adquiridas na infância, o falante desenvolve duas línguas maternas e, nesse caso, é um falante bilingue precoce. Contudo, este fator é independente da proficiência, pois existem falantes bilingues que crescem com as duas línguas e depois, já em fase adulta, só dominam uma língua, ou dominam uma muito melhor do que a outra. Há quem tenha como critério, sobretudo na Psicolinguística, apenas a proficiência. Poder-se-á aplicar um teste de competência linguística e classificar os falantes em bilingues mais ou menos proficientes nas várias línguas que domina. O importante, quando falamos de bilinguismo, é, em primeiro lugar, perceber qual foi o critério usado pelo autor para a definição do conceito.

Nos meus estudos, como já disse, assumo o critério da idade da aquisição e a ligação com o contexto. Portanto, se se trata de uma pessoa que teve contacto com a língua na infância - e a infância é até aos 10/12 anos – em contexto de imersão, então essa pessoa vai tornar-se bilingue, mesmo que se trate de uma criança que emigra aos oito anos. A criança vai ter contacto com a língua do país de emigração através da escola e dos amigos e, quando tiver 12/13 anos, será já um falante bilingue. Dependendo da idade de início de aquisição, o percurso de aquisição pode variar de criança para criança, podendo, por exemplo, ser mais demorado num caso do que em outro. Mas é muito provável que o falante irá adquirir ambas as línguas como línguas nativas se o processo de aquisição se iniciar na infância em contexto de imersão e a criança tiver contacto frequente com ambas as línguas.

Um falante que vai aprender uma língua por volta dos 14 anos, em contexto formal, e que anos mais tarde se muda para o país onde se fala essa língua e aí permanece durante muitos anos, é, segundo o critério da idade, considerado um falante L2, mesmo que alcance proficiência muito elevada na segunda língua. Contudo, isto é apenas um critério. De facto, há muitos autores que consideram que, ao viver num contexto de imersão, mesmo em fase adulta, o falante é bilingue. Explicitando o critério adotado, qualquer uma das definições apresentadas é legítima.



Considerando o grau de conhecimento e de domínio de L2 que alguns falantes atingem em contexto de emigração em idade adulta, assim como as dificuldades que, por vezes, evidenciam na seleção lexical ou na organização sintática em L1 após muitos anos de contexto de imersão em L2, podemos pensar que estes falantes também se tornam bilingues, apesar de terem passado por uma aprendizagem - e não pela aquisição - de L2?

Sabemos que, mesmo aprendendo a língua tarde, um falante pode adquirir um conhecimento muito próximo do de um falante nativo, mas a forma como chega a esse conhecimento é diferente do percurso de aquisição na infância. Não estou a querer pôr em causa a existência de um período crítico, mas há, por vezes, uma interpretação muito rígida desse conceito. É evidente que há efeitos de idade no processo de aquisição linguística, mas isso não quer dizer que um falante tardio não consiga adquirir determinadas estruturas linguísticas. Sabemos, isso sim, que a mente apreende a língua de forma diferente com o avançar da idade, beneficiando mais de mecanismos de aprendizagem explícita do que implícita. Portanto, um falante que vive durante trinta anos em contexto de emigração pode atingir um nível de proficiência que é muito semelhante ao de um falante nativo. Só que a forma como chegou a esse nível e como o cérebro processou a linguagem foi diferente.

A idade não impede o falante de adquirir outra língua. Agora, se esse falante será considerado bilingue ou não, como já disse, dependerá da definição adotada para o conceito. Devemos distinguir idade de aquisição de proficiência porque sabemos que, de facto, há falantes adultos que têm a capacidade de atingir um nível de proficiência muito elevado. No entanto, esses falantes representam apenas cerca de 15% dos falantes que iniciam uma aprendizagem tardia de uma L2. O mais comum é que, mesmo depois de muitos anos, o falante apresente particularidades não-nativas a nível fonético, não apresente um conhecimento absolutamente consolidado em determinadas áreas, como o aspeto semântico, etc. Por exemplo, há falantes que vivem há várias décadas em Portugal e não conseguem usar consistentemente de forma adequada o Pretérito Perfeito e o Imperfeito. Isso mostra que, apesar de esses falantes terem um nível de proficiência elevadíssimo, continuam a apresentar diferenças relativamente a um falante nativo da língua. Considerá-lo, ainda assim, um falante bilingue, dependerá da definição adotada.



Tendo em conta a heterogeneidade de critérios para a definição de Bilinguismo que referiu, gostaria de perguntar quais são os autores e investigadores que mais influenciam a sua linha de trabalho.

No início, quando comecei a interessar-me pelo tema do Bilinguismo, li naturalmente os autores obrigatórios. Entre eles, François Grosjean, que escreveu nos anos 80 um livro chamado Life with Two Languages, onde já se discutem todos estes aspetos da proficiência, dos contextos de utilização, do code-switching, etc. É “a bíblia do bilinguismo” dos anos 80. Ainda antes, nos anos 60, surge também um investigador chamado Uriel Weinreich, que é um dos primeiros académicos a discutir a questão do contacto entre línguas num livro chamado Sprachen in Kontakt (Línguas em Contacto). Foi a leitura desses dois autores que me ajudou a entrar nesta área.

Nos últimos anos, a área da investigação tem mudado muito e de forma muito acelerada e, por isso, há constantemente novas questões e novos termos, que fazem a área evoluir. Por exemplo, em 2004, quando eu comecei a minha investigação na área do bilinguismo, não se usava o termo Línguas de Herança na investigação na Europa, apesar de já existir no Canadá e nos Estados Unidos. No entanto, é claro que já havia na altura muitos estudos sobre crianças bilingues e aquisição bilingue. Essas crianças provinham de famílias imigrantes que viviam na Alemanha, em França, etc. Portanto, eram falantes que, no seio da família, utilizavam uma língua e noutros contextos utilizavam outra, a do país onde viviam.

Segundo os critérios atuais, eram falantes de herança. Entretanto, o termo foi introduzido na Europa e agora há muita publicação sobre falantes de herança, mas se formos analisar os participantes e as conclusões, muitas dessas publicações são semelhantes às dos anos 80 e 90, só que com outra designação e novos métodos de recolha e de análise. É preciso ter um pouco de cuidado nesta área, e em todas, relativamente aos termos, sobretudo quando queremos adotar ou criar novos termos, pois, muitas vezes, um nome diferente pode servir para repetir conclusões.

Ainda falando das línguas de herança, deve ser mencionada também a Silvina Montrul. No âmbito do estudo de problemas de erosão, há também uma investigadora que constitui uma referência e que se chama Monika Schmid. Esta autora analisou um grupo de refugiados alemães que fugiram nos anos 30 da Alemanha nazi para os Estados Unidos. Nos anos 90, foram entrevistados.

A autora pediu autorização para analisar as entrevistas, tentando responder à seguinte pergunta: será que, depois de 50, 60 anos a viver nos Estados Unidos, estes falantes, que fugiram na adolescência ou enquanto jovens adultos, sem saber falar inglês, perderam o alemão, que era a sua língua materna? O que Monika Schmid mostrou foi que, depois de tantos anos, e muitos sem falar a língua materna, mantinham conhecimento muito estável do alemão. A autora encontrou pouca erosão e mostrou que a língua, uma vez estabilizada, não é perdida, mesmo que o falante passe muitos anos sem contacto com essa língua. Tornou-se com este estudo uma grande referência na área da erosão e quem estuda estes fenómenos de perda linguística tem de estudar o seu trabalho.



Ao falar de erosão linguística em alemão por falantes luso-alemães, a Senhora Professora refere o léxico e a posição V2 do verbo como dois aspetos que refletem o fenómeno. Esses são, aliás, dois aspetos que recorrentemente dificultam a aprendizagem de alemão como L2 ou L3 por falantes nativos do português. Assim, parece que a relação/distinção entre estas duas línguas se orienta por tais aspetos. Será assim na relação do alemão com outras línguas? Ou a erosão linguística em alemão por falantes de uma língua de herança não-indoeuropeia poderá refletir dificuldades de outro tipo?

O que se passa ao nível do léxico é geral. Os estudos mostram que, quando o processo de erosão começa, o primeiro domínio a ser afetado é o léxico. Aliás, isso não é específico de falantes bilingues: também acontece em falantes monolingues! Se estivermos muito tempo sem falar sobre um determinado assunto, torna-se mais difícil aceder a determinadas palavras. Portanto, o léxico, de facto, é um domínio da nossa competência linguística que parece não ser estável. E porquê? Porque, uma parte substancial do léxico mental é adquirido, tendencialmente, de forma explícita, ao contrário de uma parte substancial dos sistemas sintático e fonético, que são adquiridos de forma implícita.

Vamos construindo o léxico ao longo da vida. É uma aprendizagem diferente relativamente a outros domínios gramaticais. E isso, claro, é válido também em situações de erosão, quando um falante bilingue deixa de falar a língua durante muito tempo. Na sintaxe, há diferentes áreas e diferentes fenómenos afetados de forma diferente. No caso do alemão, o fenómeno V2 (a colocação do verbo na segunda posição da frase) é realmente algo muito marcado. É difícil de adquirir por um falante L2 que tenha uma língua SVO e é uma das áreas onde se nota erosão quando ocorre na infância.

De forma geral, confrontando falantes bilingues de alemão e uma língua SVO, podemos dizer que a erosão sintática ao nível da posição V2 do verbo terá a ver com a diferente ordem de palavras das línguas. Mas, de facto, não podemos ter certezas porque não há estudos, por exemplo, de falantes de alemão e de outras línguas V2. Em relação ao chinês, a minha hipótese manter-se-ia. Em princípio, V2 é afetado porque o chinês, ou até o árabe, também não têm V2. Seria necessário comparar várias combinações linguísticas e isso ainda não foi feito.



A necessidade de espaço para o desenvolvimento do bilinguismo é cada vez mais uma realidade. Em outros lugares, como em Hamburgo, por exemplo, onde há, tanto quanto sabemos, uma coesa comunidade de falantes de português, há também algumas escolas com um programa bilingue. Já em Portugal, o bilinguismo tem uma dimensão muito menor relativamente ao que se passa na Alemanha e a noção de uma educação bilingue não parece tão disseminada. Como é que a Senhora Professora vê a falta de atenção ao bilinguismo por parte das entidades públicas e por vezes das próprias famílias com falantes bilingues?

Na verdade, não é bem assim. Em Hamburgo, a comunidade portuguesa já não é assim tão coesa como era quando eu lá vivi, no tempo das primeiras gerações de emigração. Nessa altura, havia uma grande comunidade. Entretanto, algumas dessas famílias já vão na quarta geração e a situação mudou. E também não é verdade que haja muitas escolas bilingues. O que houve foram várias tentativas de iniciar o ensino bilingue, mas, por exemplo em Hamburgo, já não há nenhuma escola bilingue português-alemão. Há uma em Berlim e há alguns programas, sobretudo nas escolas europeias, que tentam introduzir um programa bilingue, mas não é generalizado.

São projetos isolados, que se vai tentando implementar em algumas escolas, mas muitos deles voltam a fechar. Isso mostra que o fenómeno não é assim tão valorizado como nós pensamos que poderia ser numa sociedade multilingue e multicultural, onde há muitas comunidades emigrantes, como é a sociedade alemã ou a francesa. Quem valoriza a educação bilingue são tipicamente famílias de classe média/ média-alta que podem pagar escolas com ensino bilingue integrado como a Deutsche Schule ou o Lycée Français. Nestes casos há, de facto, uma valorização do bilinguismo, mas essa valorização ocorre associada a poder económico.

Já em Portugal não temos uma sociedade tão multicultural e multilingue que justifique sistemas de ensino bilingue. Em Lisboa procurou-se implementar uma escola bilingue português-crioulo de Cabo Verde e esse programa existiu durante alguns anos, mas estes projetos têm de ser apoiados financeiramente. Tem de haver meios para pagar aos professores. Não havendo um verdadeiro apoio, a sua manutenção é difícil. Por outro lado, há ainda muitos professores, psicólogos, diretores de escola que aconselham as famílias a não usarem a língua da família! Isso é ainda muito comum na Alemanha, em França e nos outros países europeus, ou seja, ainda há, nesta altura, uma grande diferença entre o discurso da União Europeia, de valorizar o multilinguismo, e a realidade das sociedades multiculturais onde há muita emigração. Há escolas europeias, mas são poucas e não têm todas as línguas.

Em relação ao português, há um liceu em Estugarda, uma escola europeia em Colónia, havia um projeto bilingue em Hamburgo que fechou e há uma escola europeia em Berlim. Portanto, na Alemanha toda, que é um país com 80 milhões de habitantes, há talvez cinco ou seis escolas que tentam ter um programa bilingue. À parte disso, há a rede Camões, de ensino de português no estrangeiro, que apoia e paga professores que dão aulas de português língua de herança aos filhos de emigrantes. São aulas num formato extracurricular, à tarde, geralmente de forma não integrada no sistema. Essa rede funciona muito bem e creio que, neste caso, devemos valorizar o esforço de Portugal em ter professores em vários países (em França, na Alemanha, no Reino Unido, no Luxemburgo, na Suíça, nos Estados Unidos, no Canadá, etc.). É algo único e muito pouco conhecido a nível internacional! Contudo, o que acontece hoje em dia é que o número de crianças inscritas nestes cursos está a descer. Em muitos casos, estamos já perante terceiras e quartas gerações de lusodescendentes que já não falam português em casa e os filhos são inscritos nestes cursos para aí adquirirem o português. Mas claro que não é com uma hora por semana de ensino que vão adquirir uma língua!

Para além disso, muitos pais ainda não têm a certeza se é bom ou não apoiar o português. O bilinguismo é bom! O que a investigação mostra claramente é que não há uma relação prejudicial entre a aquisição da língua da família e a aquisição da língua do país. A aquisição da língua do país ocorre de qualquer forma, logo as crianças não precisam que os pais falem essa língua em casa.

Por outro lado, crianças que são apoiadas na língua de herança e que têm, por exemplo, escolarização na língua de herança, alcançam também efeitos positivos em termos de competências de literacia na outra língua. Uma criança que aprende a ler e a escrever em português, na Alemanha, terá também um melhor desempenho na aquisição do alemão, mostram os estudos. Porém, a mensagem ainda não chegou, nem aos pais nem a muitos professores nas escolas. Ainda assim, o que me parece realmente importante é que as próprias comunidades emigrantes continuem a organizar-se. Por exemplo, atualmente, a comunidade chinesa em Portugal tem, na Varziela em Vila do Conde, escolas chinesas a funcionar ao sábado e domingo à tarde. As crianças aprendem mandarim e são as próprias comunidades que pagam aos professores. E é um esforço importante, esse da comunidade, em reconhecer que é importante manter a língua de herança. Seria a situação ideal ter o ensino da língua de herança integrado no sistema público, mas ainda não estamos lá.



E já agora, como é que a Senhora Professora vê o atual ensino de línguas segundas no ensino básico e secundário em Portugal?

Aqui em Portugal, a experiência que tenho é através dos meus filhos. O que eu pude ver, por exemplo, foi que, no caso do francês, um deles não desenvolveu competência produtiva na língua porque teve aulas com uma professora que seguiu o método tradicional do ensino do francês, muito baseado na escrita e no ensino da gramática e com pouco treino da oralidade. No caso do inglês, já foi muito diferente, pois a professora falava muito inglês e faziam muitos exercícios de compreensão oral.

Claro que isto tem também muito a ver com a formação dos professores. A classe dos professores está envelhecida e, portanto, aqueles que neste momento estão a ensinar línguas, francês, por exemplo, são professores que já o fazem há cerca de 30 ou 40 anos e que tiveram uma formação numa altura em que ainda se defendia um método de ensino de línguas tradicional, baseado na descrição explícita da gramática. Entretanto, a formação de professores e mesmo a investigação sobre o ensino de línguas passou por várias fases. Uma primeira fase foi essa de ter nas aulas de língua um texto, procedendo-se à leitura desse texto, à aprendizagem do vocabulário contido nesse texto e ao treino de um determinado aspeto gramatical através de exercícios. No fim, tudo culminava num teste. Vimos que esse método não resultou: explicar a gramática de forma isolada não é muito eficaz.

Assim, nos anos 80/90 passou a valorizar-se o método comunicativo. Passou a considerar-se que os falantes precisavam, ao aprender uma língua, de ouvir essa língua e de comunicar. Este método baseava-se na ideia de que, através da exposição informal, a aprendizagem implícita seria ativada e assim se adquiria a língua. Segundo este enfoque comunicativo, os professores deviam, primordialmente, tentar criar situações de comunicação na sala de aula. Porém, verificou-se que este método também não era suficientemente eficaz.

Neste momento, estamos numa fase da investigação sobre o ensino de línguas em que se voltou a perguntar: qual o papel da gramática no ensino de L2? O foco na forma afinal é eficaz, ou não? Encontramos neste momento muitas teorias e abordagens que valorizam o 'foco na forma', mas não segundo o método tradicional. Estas são as chamadas teorias de input enhancement (reforço do input) ou input processing (processamento do input), que defendem que o professor deve criar situações de comunicação, fazendo 'notar' simultaneamente um determinado aspeto gramatical. Neste momento ainda estamos numa fase de transição, mas talvez no futuro já tenhamos professores que apliquem esta abordagem mais moderna - provavelmente mais eficaz - e que se sirvam também das novas tecnologias. Sabemos que, se estas forem bem aproveitadas, podem dar um grande apoio na aprendizagem de línguas.


Será que, se houvesse uma maior participação de linguistas e especialistas em aquisição de linguagem na construção dos programas e uma maior valorização por parte do governo do trabalho que eles desenvolvem, até mesmo na formação de professores, a situação do ensino em Portugal melhoraria?

Eu assisti, no ano passado, a uma comunicação muito interessante do Professor Doutor João Costa, linguista e atual Secretário de Estado para a Educação, em que ele tentava mostrar como o trabalho de um linguista pode, de facto, ajudar a melhorar o currículo das escolas. O linguista poderá ter um papel importante, não só no ensino de línguas, mas ao nível do desenvolvimento das competências de leitura e do próprio programa de língua materna. Há, de facto, um contributo que pode ser dado. No entanto, o linguista não é pedagogo, logo, tem que trabalhar em conjunto com o especialista de didática. Muitas vezes há confusão entre o que é o papel do linguista e o que é o papel do especialista em didática. Creio que o ideal seria trabalharem em conjunto.



Soubemos recentemente, na sessão plenária proferida pela Senhora Professora no Encontro Nacional da APL 2019, que se tem focado num estudo longitudinal de um mesmo falante de PE. Como tem sido essa experiência e o que considera serem as grandes vantagens de estudos deste tipo?

Nessa comunicação referi um estudo de uma criança, que agora é adolescente, quase adulta, que cresceu na Alemanha, filha de pais portugueses, com o alemão como língua dominante. Quando tinha nove anos, veio para Portugal morar. Eu gravei essa criança em alemão durante ano e meio a partir do momento em que ela chegou a Portugal. Esse foi realmente um estudo muito importante, pois era apenas uma participante, mas que acompanhei durante 18 meses. Assim, consegui reunir informação muito valiosa sobre a forma como começa o processo de erosão, pois essa criança veio para Portugal com o alemão como língua dominante e deixou de ter contacto com o alemão assim que chegou a Portugal.

A primeira entrevista foi gravada duas semanas depois da participante regressar a Portugal e foi inteiramente conduzida em alemão. Nessa entrevista não encontrei um único sinal de erosão. Na segunda entrevista, gravada cinco meses depois, a participante começou a revelar problemas de léxico. Não se lembrava de palavras (não muito comuns) e começou a produzir frases com sujeitos nulos em alemão, o que não é possível. A terceira entrevista foi feita após um ano de estadia em Portugal e foi surpreendente observar o nível de perda linguística. A participante não se lembrava de palavras básicas como ‘tio’ ou ‘cão’, a perda da posição V2 do verbo em alemão era evidente, bem como vários problemas ao nível morfológico do caso e do género. Além disso, a participante já não queria falar alemão. 18 meses depois já não consegui gravá-la em alemão. Nessa última entrevista, ela entendia o que eu dizia e apontava para imagens, mas não conseguiu produzir frases em alemão.

Este estudo confirmou a minha teoria de que o processo de aquisição decorre até aos 11/12 anos e de que esse processo é acompanhado por um processo de estabilização. Se há, durante esse período de estabilização, uma perda de contacto com uma das línguas, o conhecimento perde-se ou pelo menos torna-se muito inibido e instável. O processo de erosão começa rapidamente na infância se a criança bilingue perder o contacto com uma das línguas. Tudo isto só consegui mostrar verdadeiramente a partir deste estudo longitudinal.

Portanto, estes estudos são importantes, apesar de muitas vezes não serem valorizados por não apresentarem grupos grandes de participantes, como normalmente se espera. Fui recentemente a uma conferência sobre bilinguismo e andava à procura de uma sala com outra pessoa, que a certa altura olhou para o meu nome e disse: “Tu és a Cristina Flores do tal estudo de caso sobre erosão!”. Aí eu percebi que esse estudo, com uma participante, é mais lido do que estudos que tenho com 30 e 40 participantes. Às vezes, não é o número de participantes que importa, mas sim ser capaz de captar uma situação tão específica como é esta da perda da linguagem.



Comparando com o estudo de Monika Schimd que a Senhora Professora referiu sobre os alemães de origem judaica que fugiram da Alemanha nazi para os Estados Unidos da América nos anos 30 e que não perderam competência linguística em alemão apesar de um afastamento de cerca de 50/60 anos do país e eventualmente da língua, esse seu estudo, da participante parece confirmar que o fator idade é fundamental.

É exatamente a idade que explica os dois estudos! Os participantes que Monika Schimd estuda nesse seu trabalho de 2002 tinham emigrado todos a partir dos 14 anos. O que eu mostro na minha tese de doutoramento e noutros trabalhos é que de vários falantes que voltaram para Portugal, vindos da Alemanha, com diferentes idades, todos aqueles que tinham voltado antes dos 12 anos apresentavam problemas ao nível do seu conhecimento sintático e morfossintático, mesmo vivendo em Portugal há pouco tempo (2 a 5 anos). Aqueles que tinham voltado com 13 anos ou mais - e recordo-me bem de uma senhora que tinha vindo para Portugal aos 13 anos e que vivia há 25 anos sem falar alemão - não apresentavam erosão sintática. Isto foi naturalmente ao encontro do que mostrou Monika Schimd: até por volta dos 12 anos, caso haja uma perda de contacto com a língua, a aquisição será destabilizada e a competência, embora não desapareça totalmente, torna-se instável; a partir dos 13 anos, a competência sofre menos alterações, pois a aquisição gramatical parece já estar estabilizada.

O estudo de Monika Schimd mostrou que, mesmo depois de 60 anos sem falar alemão, os participantes apresentavam erros de V2 à volta de 5%. A falante acima referida, que voltou para Portugal aos 13 anos, apresentava uma percentagem muito semelhante relativamente a esse mesmo fenómenos. A idade parece ser, portanto, o fator fundamental para a erosão linguística. A idade e, claro, a perda total da língua, pois, caso os falantes que voltaram para Portugal continuassem a falar alemão, a sua situação linguística seria completamente diferente. Estas conclusões têm, mais uma vez, implicações importantes na escola e na sociedade. Tenho tentado passar esta mensagem através de sessões de esclarecimento para pais portugueses na Alemanha.

Tento mostrar, através destes estudos sobre erosão, como não basta falar em português com a criança até aos 6 anos, pois, se deixarem de falar a língua nessa altura, a criança perderá a competência nessa língua. Como linguistas, penso que é o que temos de fazer: tentar chegar às pessoas e mostrar, de forma simples, o que revela a investigação, incentivando-as a usarem as suas línguas de origem na comunicação com os seus filhos.


Tendo em conta a vasta produção da Senhora Professora na área do Bilinguismo, quais considera serem os maiores desafios dessa área? E, também, quais os maiores desafios de trabalhar empiricamente com falantes bilingues?

Trabalhar com participantes é sempre um desafio porque é muito difícil conseguir reunir participantes. O mais recente problema a que me tenho dedicado é tentar relacionar os fenómenos de erosão com os fatores de input. Para isso, estamos a usar longos questionários, a serem preenchidos pelos participantes ou por um familiar dos participantes. Contudo, conseguir convencer uma família a investir tempo para responder a um questionário de 18 páginas com perguntas sobre a vida familiar não é tarefa fácil.

Portanto, um desafio é sem dúvida conseguir convencer as pessoas a participar. Outro desafio é conseguir trabalhar com pessoas de outras áreas. Já há muita investigação sobre vários aspetos do bilinguismo, mas agora é preciso chegar, por exemplo, às escolas, às famílias, aos professores e só se chega lá trabalhando com pessoas da didática. Já percebemos também que uma criança de 9 anos, depois de um ano sem contacto com a língua, não vai conseguir produzir determinadas estruturas, mas agora seria muito importante perceber o que acontece no cérebro durante esse período. Seria necessário trabalhar com um neurologista.

Portanto, o desafio agora é o trabalho interdisciplinar com recurso à didática, à medicina e mesmo à sociologia, por exemplo, para mostrar os efeitos da valorização da língua de herança numa comunidade multilingue. Depois de muita investigação, é comum chegarmos a um ponto em que parece que nos estamos a repetir, parece que já vimos tudo e que tudo já foi dito, mas não é assim. Há muito ainda por fazer, temos é que trabalhar com as pessoas certas!


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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.

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