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Entrevista: Prof. Dra. Ana Maria Brito (Universidade do Porto)


Entrevista publicada no Volume 10 nº 1 (2021) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP (<https://ojs.letras.up.pt/index.php/elingUP/article/view/10681/9797>).


A Professora Ana Maria Brito é Professora Jubilada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O seu trabalho desenvolve-se na área da Sintaxe Generativa, ocupando-se sobretudo de temas de Sintaxe Comparada, da interface Sintaxe-Semântica e Sintaxe-Morfologia, bem como da variação sintática em Português. Em 1988, defendeu a sua tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, intitulada A sintaxe das orações relativas em português, editada três anos mais tarde pelo Instituto Nacional de Investigação Científica.

A carreira da Professora Ana Maria Brito evidencia um enfoque em questões relacionadas com o sintagma nominal, a ordem frásica e as orações relativas e completivas. Não obstante, a sua vasta produção evidencia um interesse genuinamente amplo por uma diversidade de questões sintáticas relativas à língua portuguesa.

Entre os diversos aspetos que poderiam ser referidos, optamos por mencionar os vários seminários que a Professora Ana Maria Brito orientou em diversos locais do globo (Moçambique, Alemanha, Brasil), o facto de ter dirigido durante vários anos a revista Linguística, Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto, um mandato na presidência da Associação Portuguesa de Linguística, à qual está ligada desde as suas origens. Para além disso, a Professora é autora e coautora de livros, entre eles, a Gramática da Língua Portuguesa, tendo ainda escrito dezenas de artigos e capítulos de livros nas suas principais áreas de investigação.

sobre a morfossintaxe das línguas de sinais e que escrevi, sempre a duas ou a três mãos, vários artigos sobre a sintaxe dos Vs de movimento, dos Vs de transferência de posse, mais recentemente sobre os Vs copulativos em LGP e também sobre pronomes. A convite do CLUP, estiveram nestes encontros alguns dos maiores especialistas sobre línguas gestuais, Roland Pfau, Carlo Chechetto, Josep Quer, Brendan Costello, Meltem Kelepir, Ana Mineiro, e tem sido muito bom verificar que estes encontros e estes convites têm estreitado laços entre instituições portuguesas, brasileiras, espanholas, italianas e muitas outras. Além disso, tem sido possível organizar publicações que têm contribuído para o avanço do conhecimento sobre estas línguas de sinais.

Nos últimos anos, a LGP tem tido algum reconhecimento na sociedade portuguesa, mas há muito, muito a fazer, não só no sentido de valorizar a comunidade surda e a sua integração a todos os níveis, mas também em relação à língua e à investigação da sua gramática. Espero sinceramente que a investigação sobre a LGP não desapareça no Porto, quer centrada na ESE quer centrada na FLUP. Claro que há também estudiosos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, mas mais voltados para os problemas da educação de surdos.


O que diria serem os grandes desafios da Sintaxe nos dias de hoje? Em línguas já amplamente estudadas, como o Português, ainda haverá problemas formais, exclusivamente sintáticos, por descrever?

Apesar de ter havido um enorme avanço no conhecimento da Sintaxe nas últimas décadas, há ainda muito que não sabemos sobre a sintaxe do Português, das suas variantes não europeias, dos crioulos de base lexical portuguesa e de tantas línguas do mundo tão pouco estudadas e, por isso, a investigação fundamental tem de continuar a ser praticada.

Eu própria pertenço neste momento a um projeto sobre variação em Português sobre a expressão da posse e da localização, que envolve Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e percebo que há muitos fenómenos por compreender e descrever adequadamente.

Claro que, neste momento, há um grande interesse, por parte das gerações mais novas, por áreas aplicadas, como a Linguística Forense, a Psicolinguística Aplicada, estudos de aquisição e desenvolvimento da Sintaxe, a Linguística Computacional, Estudos de Tradução e, claro, a relação entre Linguística e Ensino e a formação de professores. Estou convicta de que quanto mais soubermos sobre a gramática das línguas mais estamos preparados para aplicar esses conhecimentos ao serviço de uma determinada área. Vejam a tradução, por exemplo; é importante saber muito sobre a gramática da língua de partida e sobre a gramática da língua de chegada para se ser bom tradutor. Na FLUP, o Mestrado em Tradução e Serviços Linguísticos tem um bom plano curricular a este propósito, dando lugar no seu plano de estudos a unidades curriculares de Linguística, mas outros cursos têm tido menos essa preocupação.


Que conselhos daria a um jovem investigador interessado na área da Sintaxe?

Em primeiro lugar, ler muito, estudar o que se tem produzido em Sintaxe nos últimos quarenta, cinquenta anos, embora com critério, pois a produção de teses, livros, artigos é de tal modo abundante e neste momento tão facilmente acessível pela internet que corremos o risco de não conseguir abarcar tudo o que é importante saber sobre um determinado fenómeno. Conhecer o que foi produzido sobre determinado fenómeno, mesmo em perspetivas teóricas distintas, é um momento crucial para se iniciar a investigação.

Outro conselho é a atenção aos dados: por muito interessante que seja uma hipótese teórica, se ela não capta os dados observados, temos de alterar a hipótese e ir ao encontro de uma nova explicação. Neste momento, apesar do recurso à intuição e à introspeção continuar a ser importante, é absolutamente fundamental procurar dados reais, de corpora, que comprovem certas possibilidades combinatórias. Mas, cuidado, haverá sempre construções linguísticas que nós sabemos que são possíveis e que nunca encontraremos nas bases de dados disponíveis. Por isso, há que continuar a usar metodologias mistas, com exemplos criados e manipulados pelo próprio investigador e com recurso a corpora.

Investigar em Sintaxe não é uma tarefa simples e há teorias e formalismos que afastam alguns estudantes. Eu percebo que há estudantes que acabam por escolher áreas que consideram mais acessíveis, como a Análise de Discurso e a Pragmática, por exemplo, pois estão convictos de que essas áreas relacionam a linguagem com a sociedade e a cultura. Porém, há que ter alguma atenção em relação a certos modelos, pois, ao colocarem questões demasiado abrangentes e ao formularem hipóteses muito vagas, não estão de facto a fazer ciência e as hipóteses que avançam não são nunca falsificáveis.

Uma coisa que digo frequentemente aos meus estudantes é que, para fazer Linguística, é preciso vermo-nos como cientistas, com aguçado espírito de observação e de procura de generalizações no quadro de um modelo teórico e, quando finalmente vislumbramos o que nos parece ser uma explicação dos fenómenos, esse momento, o da descoberta, dá-nos um prazer imenso.


A Senhora Professora tem várias publicações sobre a articulação entre estudos gramaticais e ensino. Além disso, foi também regente da UC Oficina de Gramática de Língua Portuguesa, lecionada no Mestrado em Ensino de Português na FLUP. Nesse sentido, o que é que nos poderá dizer sobre a importância desta relação na formação dos professores? E quanto à própria estrutura curricular dos mestrados em ensino do Português na FLUP, não estará esta demasiado distante do que se faz nos mestrados em Linguística ou em Estudos Literários?

Tenho, de facto, alguns trabalhos nesta área. Penso que tive um papel importante na FLUP ao aceitar lecionar a Oficina de Gramática de Língua Portuguesa, do Mestrado em Ensino de Português. Houve um ano em que tive uma só estudante, mas, nos anos seguintes, a disciplina ganhou estudantes e ganhou prestígio, tendo-a abandonado para dar lugar a docentes mais jovens.

É uma área muito importante para a qual têm de contribuir os linguistas, em estreita colaboração com docentes de Português e professores que há muito se dedicam à formação de professores.

Nestes últimos anos, tenho estado bastante afastada dessa área. Contudo, há várias razões para não ter investido mais, ao contrário do que fizeram, por exemplo, os meus amigos e colegas Inês Duarte e João Costa. Uma dessas razões é ter tido apenas uma muito breve experiência de ensino de Português nos Ensinos Básico e Secundário no já longínquo ano de 1975; outra razão fundamental é mover-me mal nos meandros da legislação sobre o ensino.

Porém, uma coisa é certa: o contacto regular com professores que trabalham e vivem o dia-a-dia das escolas tem-me ensinado que uma das melhores armas para se ser um bom professor de Português é ter uma sólida formação em Linguística nos seus vários domínios, pois só assim o professor está apetrechado para selecionar os conteúdos mais importantes, para perceber o que é trabalhar oficinalmente a gramática em sala de aula, para apreciar criticamente programas, materiais de ensino, tantas vezes medíocres…

Nesse sentido, é crucial fornecer aos futuros professores de língua portuguesa a melhor formação possível, incluindo sólidos conhecimentos linguísticos, sem descurar a componente literária, é certo, visto que os professores de Português são, sobretudo no Ensino Secundário, simultaneamente professores de língua e professores de literatura.

As Faculdades de Letras têm-se esforçado, nos últimos anos, em dar a melhor formação possível aos futuros docentes; nesse sentido, se há alguma coisa a mudar na estrutura curricular dos mestrados em ensino do Português na FLUP, seria reforçar alguma preparação em Linguística, designadamente permitindo ainda mais o acesso a unidades curriculares de opção, que afinal são lecionadas na mesma instituição.


Enquanto docente já foi responsável por variadas disciplinas, lecionando atualmente outras tantas, tais como Linguística Geral, Temas de Sintaxe ou Sintaxe Comparada. Ao olhar para esse longo percurso de docência, o que é que nos poderá dizer sobre ele? Mudaria algo na forma como tem ensinado?

A experiência docente ao longo destes quarenta e tal anos na FLUP foi das coisas mais importantes e bonitas da minha vida. Claro que um bom docente não se faz com dois ou três anos de trabalho. Só se é um bom professor ao fim de dez, vinte anos de ensino. Eu sei que, nos primeiros anos, era uma docente que dava muita importância às noções teóricas e, por vezes, tinha dificuldade em perceber o verdadeiro nível de conhecimentos dos estudantes. Ao fim de alguns anos, vamo-nos apercebendo dessas falhas e vamos melhorando. E é realmente uma sensação maravilhosa perceber que estamos a abrir perspetivas novas e ver aquele “brilho” nos olhos em alguém que está a perceber o funcionamento de algo de que não tinha dado conta antes. Tenho tido também muita sorte, pois tenho tido saúde e energia, tenho podido dar aulas de pé, escrevendo no quadro, distribuindo exercícios, deslocando-me na sala para ver o que os estudantes vão fazendo, corrigindo-os, interpelando-os. Como podem imaginar, o ano de 2020 foi muito difícil ao nível da docência, pois dar aulas à distância ou dar aulas mistas, em zoom e presenciais, não tem sido uma tarefa entusiasmante.

Em resumo, a única coisa que realmente mudaria, se pudesse, ao nível da docência, era a experiência de 2020!


Em setembro deste ano, foi publicada uma notícia no jornal Público que descrevia o estado de envelhecimento da classe docente no ensino não-superior em Portugal. De acordo com os mais recentes dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), cerca de 63% dos professores que estavam no quadro em 2018/2019 tinham idades iguais ou superiores a 50 anos. Na edição de 2019 do relatório Education at a Glance, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) estimava que só 1% dos professores portugueses tivesse menos de 30 anos. Paralelamente, no ensino superior a situação não é mais animadora, não havendo muitas vezes a renovação docente esperada nem o apoio necessário à investigação, o que faz com que muitos bons estudantes emigrem para trabalhar em universidades estrangeiras. Na sua opinião, será que esta situação constitui não só um problema para a aprendizagem dos mais novos, como também um grave impedimento ao avanço da Ciência, neste caso da Sintaxe, em Portugal?

Houve e há um grave problema, em Portugal e na Europa em geral, de envelhecimento da classe docente no ensino superior. Perderam-se anos de investimento na formação das novas gerações. Nós deveríamos estar a preparar a camada mais jovem de investigadores e docentes na casa dos 25 / 30 anos, a camada que iria substituir daqui a uns anos, em todas as suas atribuições, os que hoje têm 40 / 45 anos e isto em todas as áreas. Contudo, o que temos em muitas faculdades do país é um corpo docente envelhecido, na ordem dos 60 anos, e não existe a tal camada intermédia.

No caso do Centro de Linguística da Universidade do Porto e da FLUP, tenho a sensação de que estamos a começar a preparar uma nova camada jovem de investigadores. Mas terão os jovens que hoje têm 25 / 30 anos acesso a uma carreira estável e duradoura no ensino superior e na FLUP em particular?

Como sabem, a FLUP tem, desde há anos, uma grave situação financeira. Porém, nem sempre foi assim, houve anos mais folgados, em que se poderia ter investido mais nas gerações mais novas. E por isso, distanciei-me, por vezes frontalmente, de orientações dos que nos dirigiram no passado, por não terem percebido que era necessário dar a mão a vários jovens que poderiam ser agora docentes ou investigadores de qualidade.

Essa é uma temática dolorosa para mim, porque, como sabem, arrisco-me a deixar a Faculdade de Letras sem um docente ou investigador em Sintaxe para me substituir, apesar de eu ter cumprido a minha função de orientação e de preparação de novas gerações. Orientei cerca de 40 dissertações de mestrado e orientei cinco teses de doutoramento já concluídas, estando a orientar ou a coorientar mais cinco teses de doutoramento em curso. Onde estão essas pessoas que eu orientei? Nenhuma está na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Algumas estão a fazer um excelente trabalho em escolas do Ensino Básico e Secundário ou no Politécnico e isso conforta-me um pouco. Mas outros não tiveram sorte, eu sei, e perdi muitos possíveis colaboradores…


Entre os vários projetos que integrou ao longo da sua carreira, qual terá sido aquele que, em termos de trabalho e descobertas, mais a estimulou?

Se por projetos querem dizer projetos financiados, eu fiz parte de alguns, mas não muitos. Sempre disse que na FLUP não fazia muito sentido elaborar projetos em que eu fosse o coordenador e o único investigador, pois não há sintaticistas para além de mim. Neste momento faço parte de um projeto na área da expressão da localização e da posse em variedades do Português, sediado na FLUL, dirigido pelo Professor Tjerk Hagemeier, um projeto muito interessante, infelizmente algo atingido pela pandemia, mas que, mesmo assim, está a produzir materiais de muita qualidade.

Em termos de publicações coletivas, fiz parte de algumas - a Gramática da Língua Portuguesa, da Caminho, a Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o Handbook of Portuguese Linguistics, da Wiley-Blackwell – e todas foram importantes para mim. Contudo, tendo de escolher uma, a Gramática da Língua Portuguesa, que conheceu três edições (1983, 1989 e 2003), foi talvez a experiência coletiva mais importante da minha vida: eu era mais jovem, deslocava-me a Lisboa com frequência e as reuniões de trabalho, quase sempre em casa da querida e saudosa Professora Maria Helena Mateus, eram pontos de encontro e de troca de impressões que me fizeram crescer como linguista.

Uma atividade que me deixa também orgulhosa foi a direção da Linguística, Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto, depois de a Professora Graça Pinto ter deixado de ser diretora, no final do volume 4. A revista recebeu a colaboração de muitos linguistas nacionais e estrangeiros e penso que tem servido para mostrar o dinamismo do Centro de Linguística da Universidade do Porto na divulgação e promoção da investigação na nossa área.


A Senhora Professora foi, durante vários anos, Presidente da Associação Portuguesa de Linguística. Gostaríamos que nos falasse um pouco sobre o trabalho que desenvolveu dentro da Associação, sobre a importância que a APL tem ainda hoje, sobre o que é que sentiu que deixou feito e, eventualmente, por fazer e que rumo gostava de a ver tomar no futuro.

Fui Presidente da Associação Portuguesa de Linguística apenas num mandato de dois anos, porque, confesso, a parte burocrática, a parte financeira, a relação com os bancos, por exemplo, são assuntos que não me cativam. Porém, foi muito estimulante organizar dois encontros nacionais (com os colegas Antónia Coutinho, Alexandra Fiéis, João Veloso e Fátima Silva), editar um dos volumes de Textos Selecionados (o primeiro foi inteiramente editado pela Antónia Coutinho e pela Alexandra Fiéis), organizar no Porto um encontro de todos os Centros de Linguística do país e em que tomámos algumas posições de defesa da Linguística perante a FCT.

Eu tenho uma relação muito especial com a Associação Portuguesa de Linguística: fiz parte da sua Comissão Instaladora em 1984; participei, com ou sem comunicação, em muitos dos seus encontros; fui convidada para fazer conferências plenárias duas vezes; fiz parte de vários júris de atribuição de prémios. Tudo isto permitiu-me acompanhar a produção linguística em Portugal durante mais de quarenta anos e constatar o crescimento e a grande qualidade da investigação realizada. E, acima de tudo, fiz muitas amizades e tenho ótimas recordações de jantares e de belas conversas ao final do dia, às vezes com um copo de vinho na mão… Em 2020, fiz questão de assistir a muitas das comunicações do XXXVI Encontro Nacional e de participar no ato eleitoral, mas em zoom não tem o mesmo gosto. E fica o desejo de que os encontros voltem a ser presenciais, com abraços de verdade!

A Associação Portuguesa de Linguística tem de continuar a ser o que sempre foi, uma associação dos linguistas portugueses, em que todos se sintam bem, qualquer que seja a sua abordagem teórica, que promova a qualidade da investigação e que estimule a investigação dos mais jovens, mas sempre num diálogo entre gerações que, na minha perspetiva, tem sido uma imagem de marca desta associação.


A APL tomou posições públicas por diversas ocasiões, nomeadamente em relação à revisão dos programas da disciplina de Português no Ensino Básico e ao Acordo Ortográfico de 1990. Na opinião da Senhora Professora, esses temas são ainda polémicos? Ou haverá novas questões a dividir a opinião pública do ponto de vista linguístico?

Penso que esses continuam a ser os dois temas mais polémicos e que dividem as opiniões da sociedade portuguesa e também, embora em menor escala, dos próprios linguistas.

Em relação ao Acordo Ortográfico: a ortografia de uma língua é, como sabemos, sempre um ponto de equilíbrio entre a aproximação à pronúncia e a aproximação à etimologia. O Acordo de 1990, embora tente conciliar a vertente fonética e a vertente etimológica, claramente dá menos força à dimensão etimológica e, por isso, há linguistas e profissionais da língua portuguesa que estão contra ele. Os linguistas que estão habituados a olhar para diferentes grafias e que têm clara consciência de que a ortografia não é a língua são capazes de manifestar uma visão mais distante e fria em relação a tudo isto e, por essa razão, em geral, não se opõem ao Acordo. Além disso, veem nele uma tentativa de unificação da ortografia no todo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. É um pouco o meu caso. Embora não seja uma entusiasta do Acordo, cumpro-o há anos sem grande dificuldade. A Associação Portuguesa de Linguística, num determinado momento, manifestou-se contra o acordo, em parte porque há bases que vão contra um lado fonológico de acordos anteriores: por exemplo, ao não preconizar a acentuação em ‘pára’ e ao aproximar a grafia da forma verbal à preposição ‘para’, o Acordo está de facto a menorizar uma diferença de caráter fonológico entre o chamado “a aberto” [a] e o chamado “a semiaberto” [α].

Passados estes anos, o que me impressiona são dois fenómenos distintos: o facto de esta questão ter sido tão mal conduzida do ponto de vista político e institucional e o facto de este acordo ter permitido algumas opcionalidades na ortografia, uma ideia que, de certo modo, é contrária à ideia de acordo e que tem levado, por parte de algumas pessoas a escreverem “n’importe quoi”. Custa-me ver erros de ortografia em certos meios de comunicação, como em canais de televisão, por exemplo. O que me leva a outra questão. Mais importante, talvez, do que a discussão sobre o Acordo é a melhoria contínua do ensino da língua portuguesa, em que a ortografia ocupa um lugar importante, é certo, mas em que há muitos outros aspetos a considerar: a necessidade de um enriquecimento lexical ativo por parte dos alunos, a melhoria da sua competência sintática, o estímulo à leitura, entre outras competências. E isso aplica-se não só aos jovens, mas também a todos os profissionais que lidam com a língua portuguesa.

Em relação à revisão dos programas de Português no Ensino Básico, algumas propostas recentes das Metas Curriculares foram criticadas quer pela Associação Portuguesa de Linguística quer pelo Centro de Linguística da Universidade do Porto. As críticas foram de vária ordem: as Metas trouxeram uma redução considerável aos conteúdos gramaticais (deixaram de estar nos programas temas tão diversos como as relações semânticas de anterioridade, posterioridade e simultaneidade, os adjetivos relacionais, entre outros); certos conteúdos, dentro do mesmo ano de escolaridade, apresentam graus de dificuldade desiguais; e muitos outros aspetos, que não vale a pena estar aqui a discriminar e que puseram em causa o trabalho desenvolvido por linguistas e professores de Português durante décadas. Estive solidária com a Associação Portuguesa de Linguística e com o Centro de Linguística da Universidade do Porto, embora, confesso, nos últimos anos tenha estado afastada destas polémicas. Uma coisa me parece muito importante: há que unir esforços para melhorar a qualidade do ensino / aprendizagem da língua portuguesa, há que desenvolver cada vez mais o gosto pela leitura e pela escrita e contribuir para a reflexão sobre a gramática, pois sabemos hoje que tal reflexão não só melhora o desempenho oral e escrito da língua, como desenvolve o raciocínio abstrato.


Dado este momento na carreira da Senhora Professora, muito próximo do seu momento de jubilação, seria expectável perguntar o que virá depois desse momento. Por isso, gostávamos de terminar esta entrevista surpreendendo-a com uma pergunta diferente. O que estaria agora a fazer a Senhora Professora Ana Maria Brito se não tivesse optado pela Linguística?

No futuro próximo, além de continuar a orientar algumas dissertações de mestrado e teses de doutoramento, vou tentar publicar alguns textos meus que ficaram por concluir nos últimos anos e, se tal for possível, continuar a ir a um ou dois congressos por ano.

Quanto ao que eu gostaria de ter feito se não fosse a Linguística… As línguas sempre me atraíram e lembro-me, desde muito pequena, de gostar de sons e de rimas, de saborear as palavras, de discutir com a avó sobre funções sintáticas e a divisão de orações em Os Lusíadas!…

Se pudesse escolher um talento, seria sem dúvida o da música. Há aliás uma relação íntima entre música e linguagem, como Roman Jakobson tão bem viu em Linguistique et Poétique e como Óscar Lopes, de maneira magistral, tão bem analisa nos seus ensaios sobre Eugénio de Andrade, designadamente no ensaio Uma espécie de música. Considero que a arte e a ciência são as duas manifestações humanas mais nobres. A música, em particular a de Bach e a de Mahler, só para escolher dois dos meus compositores preferidos, tem sobre mim o poder de me transcender, de me evadir do quotidiano, de fruir o que de mais belo e de mais profundamente sensível a natureza humana é capaz de produzir. Contudo, não tendo podido escolher a música, sinto-me bem a fazer investigação em Linguística.


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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.

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