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Entrevista: Prof. Dr. Ivo Castro (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa & Centro de Linguística da Universidade de Lisboa)


Entrevista publicada no Volume 5 (2016) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP (<https://ojs.letras.up.pt/index.php/elingUP/article/view/2535/2323>).


O Doutor Ivo Castro é Professor Emérito da Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras ensina desde 1969 e é investigador do Centro de Linguística da mesma Universidade. Entre outros cargos, presidiu à comissão instaladora da Associação Portuguesa de Linguística (APL). É autor de livros e artigos nas áreas da História da Língua Portuguesa e da Crítica Textual. Em julho de 2017, será homenageado no IV Congresso Internacional de Linguística Histórica, em Lisboa. A sua experiência no domínio do ensino e estudo da língua portuguesa foi motivo para a presente entrevista da revista elingUP, cuja gravação teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, durante grande parte do dia 22 de julho de 2016.

Durante a entrevista, tratámos primeiramente de aspetos biográficos do Professor, seguindo-se algumas questões acerca de alguns problemas linguísticos que despertaram em nós uma especial curiosidade e, por fim, procurámos que o entrevistado nos desse um panorama geral sobre a atualidade da Linguística em Portugal, segundo os seus pontos de vista.

Esperamos que o resultado final agrade e interesse a estudantes, investigadores e ao público em geral. Para nós, entrevistadores, foi uma oportunidade marcante de crescimento pessoal e científico. Por isso, e pela disponibilidade e simpatia, agradecemos ao Professor Doutor Ivo Castro.


Carlos Sousa e Silva - Quando e como surgiu o interesse na área da Linguística?


Ivo Castro - Bastante cedo e gradualmente, quando eu ainda nem sabia o que era a linguística. É um daqueles percursos que são simples e que vão acontecendo sem fazermos nada para isso. Quando entrei para o liceu, queria ser professor de Português e Francês. Então percebi que havia um curso para isso mesmo, que era o curso de Românicas. Portanto, quando chegou a altura de escolher, no então quinto ano de liceu, escolhi Românicas, o que me obrigou a mudar de liceu porque aquele onde eu estava, o Pedro Nunes, não tinha essa alínea. E porque não tinha? Porque muito pouca gente preferia esse curso. Na altura, o reitor do liceu chamou-me e disse: “Ó Ivo, mas queres mesmo ir para Românicas?”. Eu disse que sim, ao que o reitor respondeu: “Mas é um curso de meninas”. E, de facto, no liceu para onde me mudei, o D. João de Castro, estavam os oito ou nove alunos de Românicas desse ano em Lisboa: eu era o único rapaz. Na faculdade já havia mais: umas quarenta ou cinquenta pessoas em Românicas.


Cristiana Teixeira - O que o cativou para a investigação em Linguística Histórica?


Ivo Castro - Eu gostava muito de História; aliás, se não tivesse sido linguista, teria sido historiador – antes queria ser toureiro, mas os meus pais parece que não gostaram da ideia. Naquela altura, início dos anos 60, a Linguística não se apresentava com um cardápio de grandes opções de escolha, como as que hoje se oferecem a um jovem estudante. Facilitou a minha adesão o facto de uma das opções mais evidentes ser a Linguística Histórica. Foi nos últimos anos de liceu que comecei a perceber que no estudo da língua portuguesa não havia apenas literatura, mas outra coisa mais instigante, o estudo da língua na perspectiva da sua história. Tive a sorte, ou a infelicidade, não sei, de ter nesses anos um professor que era o modelo acabado de gramático do século XIX, o Dr. Francisco Júlio Martins Sequeira, autor de um compêndio de gramática histórica, pessoa que encarnava o paradigma de José Joaquim Nunes, José Maria Rodrigues, ou Leite de Vasconcelos. Gostei muito da sua maneira de pegar no problema: o explicar através da origem e da evolução os factos da língua, das palavras do léxico, dos traços de pronúncia, de questões de estrutura sintática. Foi assim que, nos últimos anos de liceu, me vi embebido em princípios da Linguística Histórica oitocentista, apenas com 150 anos de atraso. Quando chego à faculdade, pela primeira vez tenho aulas de Linguística (Introdução ao Estudos Linguísticos), com um professor brasileiro, Joaquim Mattoso Câmara Júnior, que pertencia à escola do estruturalismo americano de Bloomfield. Falava sobretudo dos fenómenos da linguagem aplicados às línguas dos índios do Brasil, e não gostei nada. Fui um péssimo aluno do Mattoso Câmara e estive à beira de chumbar no exame. Só não chumbei porque a assistente dele, que também participava no exame, era a Dra. Maria Helena Paiva, que tinha sido minha professora no liceu e, pelos vistos, tinha então boa opinião de mim.

No segundo ano de faculdade, tive como professor de linguística o Doutor Joseph-Maria Piel, que tinha estado 40 anos em Coimbra e era na altura professor na Alemanha, na Universidade de Colónia. Estava a fazer um ano sabático aqui em Lisboa, onde voltou depois para ensinar até à aposentação. Fiquei muito amigo dele e da família, e preparei a publicação de alguns dos seus livros. Teve para mim um grande papel formador, porque só fazia Linguística Românica, que para ele era integralmente histórica, e veio assim reforçar aquela tendência que me tinha ficado do liceu.

Mas na formação dos estudantes não intervêm apenas as pessoas dos seus professores; são as instituições que em primeiro lugar criam as oportunidades. A Faculdade de Letras de Lisboa era, no tempo em que entrei nela, 1961/62, uma das duas únicas faculdades de Letras do país, juntamente com a de Coimbra. Em Coimbra havia grandes linguistas, Paiva Boléo e Herculano de Carvalho; em Lisboa havia o Doutor Lindley Cintra e mais três ou quatro assistentes de formação linguística, mas todos eles integrados na secção de Românicas. Na verdade, havia mais cadeiras de Linguística no plano de estudos do que linguistas para as ensinar. Umas vezes recorria-se a estrangeiros, como Mattoso Câmara ou Piel, mas as mais das vezes recorria-se a professores de Literatura. Foi assim que tive aulas de Linguística com vários professores de Literatura, que faziam os possíveis por cumprir, mas não passavam além da Estilística, que era a uma espécie de linguística do texto literário especialmente interessada em aspetos estéticos. Numa instituição como a Faculdade de Letras de Lisboa era fácil, nos anos 60, ficar por aí. Isso só não me aconteceu graças ao Doutor Cintra.

A sua figura ocupou um lugar central na minha formação, e na de tantos outros colegas nossos. Gosto de dizer que sou um aluno do Doutor Cintra; não sou mais, no meu pensamento linguístico, do que uma segunda edição atualizada/revista do Doutor Cintra. As minhas contribuições, nas áreas de estudo que temos em comum, podem ser vistas como meras atualizações ou correções de Cintra, sem que no pensamento a sua visão divirja muito daquela que hoje se pode continuar a ter. Em que pontos me afasto dele? Era otimista quanto ao futuro de uma comunidade lusófona, em cuja viabilidade ou vantagem pura e simplesmente não acredito. Era reticente quanto à identidade autonomizada do galego como língua românica própria, privilegiando as afinidades dialetais que sem dúvida tem com o português, mas que não são tudo. No que diz respeito à geografia da língua portuguesa europeia, o modelo de cartografia dialetal que Cintra propôs na “Nova proposta de classificação dos dialetos galego-portugueses” está superado; aliás, começava a ser superado na década de 60, só que isso ainda não se via; ele mesmo, se estivesse vivo, provavelmente agora reconheceria que a declinação Norte/Sul foi substituída por uma outra de orientação Poente/Nascente. Ainda uma divergência, motivada mais pelos tempos que por razões mentais: o culto da Crítica Textual como uma disciplina científica inteira, dotada de problemas próprios, com doutrina e métodos específicos, por que me bato, era para o Doutor Cintra um conjunto de técnicas editoriais úteis para o estudo e edição dos textos antigos, mas de estatuto subsidiário e dependentes sobretudo do talento de quem as usava (talento que, no caso dele, era enorme, mas intuitivo).


Carlos - A linguística não é uma área assim tão jovem, quer dizer, continua a ser jovem mas não tanto como quando o professor começou a estudar nesta área.


Ivo Castro - As pessoas é que eram quase todas jovens. Depois daquela época que vos descrevi em que me formei, e em que quase não havia linguistas, de repente começou a haver, como eu, muitos outros. A classe de linguistas que hoje tem 50/60 anos (eu era um pouco mais velho), nessa altura estava a iniciar as suas carreiras, a fazer os seus cursos, as primeiras publicações, a trabalhar para marcar posições e a ter, em muitos casos, os primeiros êxitos. Nos anos que precederam o 25 de Abril (em que se cheirava o que não se sabia que iria haver), os linguistas eram jovens e entravam numa ciência que era nova em Portugal. Nada de diacronia ou de estilística, com que fôramos alimentados, mas novidades como a sociolinguística ou a gramática generativo-transformacional, muito atrativas e com futuro, mais esta que aquela em Portugal. No plano das instituições, não faltavam os recursos; havia muito dinheiro e disponibilidade para as universidades crescerem e evoluírem; para criarem postos de trabalho, para projectos colectivos e bolsas de investigação.

Num ambiente que nos anos 70 era dominado pela Linguística de origem norte-americana, de propensão generativa-transformacional, a investigação em linguística histórica não aparecia como a mais apetecível das novidades. Em Lisboa, a sua continuação foi facilitada pelo prestígio do trabalho de Cintra e também, principalmente, pela consciência de que a Linguística não podia viver apenas do plano das sincronias. Em Portugal, país em que estava, e continua hoje a estar, largamente por cumprir o programa de busca, edição e aproveitamento do material textual antigo, jazente em arquivos e edições esquecidas, a carência de dados historicamente diferenciados mostrou com clareza que havia necessidade de se continuar a fazer linguística histórica.


Carlos - Mas segundo esse ponto de vista então a Linguística Histórica está mais cedo ou mais tarde condenada à morte, a partir do momento em que os arquivos estejam bem explorados, a Linguística Histórica desaparece.


Ivo Castro - Em teoria, sim, uma vez que a Linguística Românica, que é uma espécie de superestrutura das linguísticas históricas românicas, já deu os frutos que tinha em vista; já deu as suas gramáticas; já explicou a história da formação das várias línguas; já fez os seus dicionários e os seus atlas. Embora na prática haja sempre novas questões por resolver, em teoria pode admitir-se que uma disciplina que tenha atingido as suas finalidades, e pense que foi bem sucedida, encare uma cessação de atividade. Uma ciência que responde às perguntas que lhe deram origem e que, portanto, cumpre a sua obrigação, pode sair de cena tranquila e feliz.

Por outro lado, ainda há muito que pode ser feito, no domínio da investigação conduzida diretamente sobre documentação antiga, que está inédita ou é pouco acessível, e de que depende um conhecimento mais completo de certas áreas. Veja-se o enriquecimento que resultou, para os estudos de dialetologia histórica e para numerosas outras formas de abordagem, de duas grandes publicações de documentação medieval inédita, uma que devemos a Clarinda de Azevedo Maia, com a importante coleção de documentos galegos e do norte de Portugal que deu a conhecer na sua tese de doutoramento, e outra que devemos a Ana Maria Martins, a quem devemos uma coleção ainda mais rica de documentos do norte e centro de Portugal. A este tipo de contributos veio juntar-se a recente tese de Fernando Brissos, que revelou um conjunto muito interessante de documentos medievais de uma região beirã, até aqui mais conhecida pelos dialetos modernos que pela sua história.


Cristiana - Dentro dos tópicos de investigação da sua área, qual é aquele que tem despertado ou desperta atualmente mais o seu interesse?


Ivo Castro - Nos últimos anos tenho trabalhado mais na área da Crítica Textual do que na área da Linguística Histórica, em parte talvez devido àquela sensação de que o caminho está percorrido. Parte dos projetos que tenho dirigido e que estou a terminar situam-se agora mais na área do estudo dos textos e na edição de textos antigos e modernos. A edição crítica de Fernando Pessoa está praticamente concluída, pelo menos no formato que a Equipa Pessoa definiu na década de 90. A edição crítica de Camilo, que do ponto de vista metodológico é um passeio, comparada com a pessoana, vai ocupar-me ainda durante uns anos. O gosto pelos manuscritos de poesia barroca, que me vem desde a tese de licenciatura, traduziu-se em extensas recolhas de material, que têm sido trabalhadas por antigos alunos, e rematará em breve, espero, com uma publicação. Finalmente, mantenho com Leite de Vasconcelos um compromisso de praticamente toda a vida: dentro de meses estará publicado online o seu Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos, que tenho vindo a transcrever com várias gerações de alunos, todos dotados de infinita paciência. Além disso, tendo sido possível reunir na biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa a biblioteca filológica do Dr. Leite, ao lado do seu espólio manuscrito, estão criadas condições ideais para um tipo de trabalho que gosto de fazer, e de ajudar a fazer.

Quando se conseguiu que, nos planos curriculares da Faculdade de Letras de Lisboa (que se multiplicaram nos últimos anos 70), tivessem alguma presença as cadeiras de História da Língua Portuguesa e de Linguística Histórica, foi possível associar a estas o ensino de uma disciplina que não é propriamente linguística, mas para a qual são precisas competências linguísticas e culturais, literárias também, que é a Crítica Textual. E com essa designação, ou a de Filologia, esse ensino também se instalou, com algum sucesso. Assim se resolveu uma das lacunas que eu encontrara na minha formação, porque gostava muito de manuscritos e da edição de textos, mas nunca tive ninguém que me desse uma aula disso.


Cristiana - Na sua perspetiva, qual é o perfil de um bom linguista?


Ivo Castro – Um bom linguista é aquele que, além de ser tecnicamente competente nos domínios de especialidade em que se formou, e de sentir curiosidade por aqueles que não domina, possui ainda uma base alargada de conhecimento empírico da língua a que se dedica, quer na sua variação diacrónica e diatópica, quer na sua dimensão cultural.


Carlos - O que é que mais lhe agrada na sua carreira, a parte pedagógica ou de investigação?


Ivo Castro - Eu gosto bastante de dar aulas em salas com muitos alunos, num ambiente de multidão. Nos primeiros anos do meu ensino, foi isso que aconteceu. Quando era assistente do Doutor Cintra em Introdução aos Estudos Linguísticos (a mesma cadeira em que quase tinha chumbado), tinha aulas com 80 ou 100 alunos, como agora alguns colegas voltaram a ter. As matérias que ensinei mais tarde ‒ História da Língua, Linguística Românica, Linguística Histórica

– passaram a ter um número menor de alunos; uma aula expositiva para poucos alunos pode correr muito bem ou pode correr muito mal, porque o tipo de reação do público tem mais peso. Agora, oriento trabalhos de seminários, de pós-graduação ou seminários permanentes com pessoas veteranas que trabalham comigo há muito tempo. Nesta mesa em que estamos, decorre todas as terças-feiras um seminário permanente que se reúne há 9 anos. Esse tipo de trabalho em pequeno grupo, quase sem pedagogia, nenhum espectáculo e muito de investigação dialogada, é a fórmula que agora me dá mais satisfação. Portanto, o evoluir das circunstâncias também ajuda a passar duns gostos para outros.


Carlos - Temos notado que a sociedade conhece pouco o trabalho que é feito nas ciências da linguagem, assim como os resultados da investigação nesta área, o que leva à sua desvalorização. Como acha que se pode melhorar esta relação entre a sociedade e a investigação em ciências da linguagem?


Ivo Castro - Talvez valesse a pena pegar nisso diacronicamente, porque nem sempre foi assim. Até aos anos 70, a linguística não existia como disciplina autónoma, nem no ensino, nem na prática. Houve, depois, a explosão da linguística ao nível da investigação e do ensino, com aplicação nos métodos do ensino secundário. Foi uma experiência não isenta de problemas, de que resultou uma reação empedernida contra o ensino da linguística ao nível do secundário, que se polarizou no debate sobre os conteúdos do programa de Português. Um debate muito cheio de ideologia.

Isso refletiu-se, entre outras coisas, no modo como evoluiu a figura pública do linguista. Assim como a linguística tinha sido encarada como uma ciência de vanguarda, capacitada para ajudar a transformar o mundo, assim o linguista aparecia investido de um papel social determinante. Chomsky era mais conhecido pelas suas causas políticas que pelos livros que escrevia. Quando a Associação Portuguesa de Linguística foi criada, sugeriu-se que deveria ser uma Ordem, o que diz bastante sobre o modo como muitos colegas encaravam o seu estatuto profissional. Seguiu-se um movimento de retração. As grandes causas em que a língua portuguesa é envolvida nem sempre contam com a participação de linguistas, as suas opiniões são ouvidas, mas nem sempre consideradas, mesmo quando têm a qualidade de parecer científico e são questões linguísticas que estão em jogo. Os linguistas não têm muito peso na sociedade e nas políticas. Quando os partidos políticos escrevem os seus programas, no que respeita à língua, ao ensino e à cultura, percebe-se que o fizeram sem conversar ou consultar linguistas, e isso é mau, antes de mais, para os próprios programas. Nesse aspeto, os linguistas fazem falta na sociedade. Em grande parte por culpa sua, ou por abstinência sua, o que talvez no futuro pudesse ser repensado e transformado em causa de combate por colegas jovens, ambiciosos, fluentes em comunicação mediática... ou com queda para o lobbying.



Carlos – Falemos agora um pouco de alguns problemas relacionados com o Português. Uma das caraterísticas peculiares da nossa língua é a existência do pronome mesoclítico no futuro simples do indicativo e no condicional. A que se deve este fenómeno e porque acontece unicamente no Português e não noutras línguas românicas?


Ivo Castro - Na mesóclise temos uma prova do grande conservadorismo de certos aspetos da morfologia e da sintaxe do Português, que, neste caso, se traduz no não completo apagamento da consciência da formação original das palavras. Ou seja, perante um verbo no condicional ou no futuro simples, não se acha completamente apagada a memória de que antes havia ali duas palavras, um verbo com o seu auxiliar, que por andarem juntas, e mesmo, a partir de certa altura, de se grafarem e pronunciarem como um vocábulo único, não perderam contudo uma certa separabilidade. Ou seja, a sua aglutinação pode ser revertida para acolher no meio um clítico.

A formação do futuro simples é feita a partir de infinitivos mais habeo, ou habeam no caso do condicional. A oclusiva sonora cai, pela posição entre vogais; o -o final também desaparece e deixa exposto um ditongo (habeo > aio > ai = ei), que se presta a ser tomado por mera desinência verbal. Mas a perífrase hei de falar ajuda a reconhecer que em falar ‒ ei os elementos são os mesmos, apenas mudando a ordem. O ponto interessante é que, através de todo este processo de fusão, permanece em português a possibilidade de retroceder a um ponto anterior. E essa possibilidade é posta ao serviço da mobilidade dos clíticos, outro grande tema da sintaxe da nossa língua. Os clíticos são instrumentos gramaticais átonos, por isso formando vocábulo fonético com uma unidade maior em cuja periferia se instalam. Mas não o fazem de modo definitivo, pelo que é possível observar, com um bom recuo histórico, verdadeiras migrações de clíticos que, em certas épocas, residem numa posição de próclise, antes do verbo, mas depois se deslocam, lenta mas maciçamente, para a oposta posição de ênclise. Estas movimentações são condicionadas gramaticalmente de modo muito sistemático, mas revelam-se também sensíveis a outras condicionantes, pois não ocorrem analogamente em todas as variedades do português, nem em todos os registos. Aqui, o que interessa é que a mesóclise, sendo uma terceira possibilidade de colocação do clítico, a meio do verbo (ou entre duas formas verbais associadas, mas não suficientemente estreitadas para o desalojar), prova que em português a formação de certos tempos verbais a partir de antigas perífrases latinas não é um processo concluído.

Isto não se observa apenas em relação às formações do condicional e do futuro. Outra evidência do mesmo processo inconcluso encontra-se no comportamento do advérbio de modo. É frequente encontrar nos manuscritos medievais advérbios em –mente que sistematicamente têm um espaço entre o adjetivo e o sufixo, o que faz pensar que essa pausa gráfica podia corresponder a uma fronteira entre vocábulos. Estes advérbios originaram-se em sintagmas latinos do tipo adjetivo + substantivo mente, os chamados ablativos absolutos (clara mente significa ‘com espírito ou de maneira clara’). Ainda hoje, este mente não é sentido como mero sufixo, e prova-o com a sua autonomia, que nos permite dizer clara e admiravelmente. O que seria impossível para um francês, obrigado a repetir clairement et admirablement, porque na sua língua estes advérbios são vocábulos indivisíveis. Talvez se possa admitir, portanto, que a gramática portuguesa, mais do que outras, não deu ainda como encerrado este processo de formação de novas palavras a partir da aglutinação de duas ou mais.


Cristiana – Quanto às marcas que deixaram, pode comparar-se a influência do substrato galaico e do substrato lusitano?


Ivo Castro – Não, a influência do eventual substrato galaico foi muito maior. Sendo substratos os vestígios que permaneceram no Latim das línguas pré-romanas com que entrou em contacto durante a romanização, podemos admitir, com alguma simplificação, que no território que viria a ser português, de sul até ao Douro, o Latim teve por substrato a língua dos Lusitanos, que era uma língua indoeuropeia, e que a norte desse rio contactou com uma ou mais línguas de povos a que chamaremos Galaicos, provavelmente não indoeuropeias. O resultado direto dos contactos foi o desaparecimento dessas línguas pré-romanas e a sua substituição por formas regionalizadas de Latim, matizadas por vestígios substráticos. O resultado a prazo foi a conversão do Latim dialectalizado de certas regiões em línguas românicas incipientes, a que chamamos romances. Alguns desses romances sobreviveram como línguas nacionais, outros estiolaram.

O romance lusitânico foi um dos que falharam, por razões da história subsequente. O seu território foi vítima de duas invasões: a muçulmana, que difundiu a língua árabe com alguma brandura, mas durante muito tempo (cinco séculos), e a cristã da Reconquista, que impôs a língua do norte de forma mais radical. Ainda encontramos no Alentejo ou Algarve algumas palavras muito antigas, formas latinas que resistiram às duas invasões: manhaninha é um moçarabismo cuja formação (manhana + inha) conserva o –n- intervocálico desaparecido no romance do norte, de onde veio a forma dominante manhãzinha (manhã + z + inha).

O romance do norte foi mais bem sucedido. O território da sua formação é a chamada Galaecia Magna, um triângulo definido por toda a Galiza, o noroeste de Portugal e, no litoral, uma faixa que desce até ao rio Vouga. Esse é o berço de um romance que, em tempos iniciais, só podemos chamar de galego-português, assim reconhecendo que nem a língua nem o povo que a falava eram internamente destrinçáveis. A destrinça viria mais tarde, quando Galiza e Portugal se tornam realidades políticas diferentes, a primeira tendo por futuro a anexação castelhana e o segundo tendo um futuro menos sombrio. A partir de fins da Idade Média, os destinos de ambos separam-se: a língua portuguesa que se reconfigura no centro e sul, e que logo será levada pela expansão, não se pode mais confundir com o galego. Mas a origem é comum, porque tinham sido comuns as modificações do Latim que mais caracterizam a língua portuguesa e a galega: lenição de consoantes intervocálicas, o apagamento da vogal final, o comportamento de sílabas de ataque inicial com pl-, cl-, fl-, que palatalizam. E, do ponto de vista lexical, bastantes vocábulos rústicos, quase todos latinos.


Carlos - No capítulo escrito para a Gramática do Português, editada pela Gulbenkian, o Professor fala da carência de estudos sobre a língua de finais do século XVIII e XIX. Considera que a investigação no âmbito da dialetologia poderia ter um papel importante para a descrição da língua neste período?


Ivo Castro - Muito se tem escrito sobre a língua da Idade Média e do período clássico, mas, quando chegamos ao século XVII, os estudos começam a minguar. É certo que, desde que comecei a pregar este sermão, ele progressivamente tem vindo a perder alguma razão de ser.

A abordagem dos dialetólogos é muito importante para a história desta época, contudo o quadro geral que se obtém é este: o mapa dialetal de Cintra de 1962, que é, em larga medida, o mesmo de Leite de Vasconcelos no final do século XIX, coincide com o mapa dos dialetos de Portugal no princípio do século XVI, ou seja, os dialetos da primeira metade do século XX estão nos mesmos espaços e têm aproximadamente as mesmas características principais que já tinham no fim da Idade Média. Portanto, trabalhos de dialetologia, em retrospetiva indireta, feitos para o séc. XVIII, não têm grandes novidades para revelar. Numa sociedade estática como suponho que a portuguesa tenha sido, a vida dialetal fazia-se dentro da família, da aldeia e da província, com hábitos transmitidos de geração para geração, sem movimentos transversais de influência. Logo, para quem busca instrumentos para conhecer melhor o estados de língua passados, a abordagem dialetal não é vital, pois apenas nos diz que o passado remoto era bastante semelhante ao passado recente. Menos vital ainda seria usar os testemunhos dos gramáticos para conhecer a língua deste período, pois o normativo não descreve o que existe, apenas sugere o que não existe. A literatura metalinguística portuguesa dos sécs. XVI a XIX só é informativa quando critica práticas linguísticas reais.

O que há de novo nessa época que nos pode dar informação interessante? Do século XVII em diante, começa a haver folhetos, gazetas, materiais escritos impressos em número cada vez maior, o que justifica que comece a valer a pena o ensino das letras. No entanto, é um ensino que, quanto mais alunos tem, em piores condições é feito, gerando uma classe semi-letrada, que escreve informalmente, sem qualidade profissional, e devia ler do mesmo modo. Essas pessoas enganam-se muito, introduzindo traços da oralidade naquilo que escrevem, mas constituem uma classe dotada de mediana competência em literacia, entre os letrados e os analfabetos, num país em que 90% da população era analfabeta. Os escritos que esses escreventes inábeis produziam são documentos linguísticos interessantíssimos, ricos em traços de oralidade, tendo sobrevivido missivas, cartas particulares, documentos da vida da Igreja e denúncias do Santo Ofício, material de segunda categoria, pouco explorado por linguistas, cujo valor tem sido demonstrado, por exemplo, pelos trabalhos de Rita Marquilhas. Aí está, portanto, uma possibilidade de alternativa à abordagem dialetal.


Carlos – Há alguns atrás, publicou algumas reflexões sobre o papel dos linguistas na fixação da norma. Considera que a situação atual é idêntica à do passado, ou considera que, atualmente, os linguistas são chamados a pronunciar-se sobre casos problemáticos relacionado com o uso na língua na sociedade?


Ivo Castro - Os linguistas não podem retirar-se da discussão pública de assuntos linguísticos. Não está bem, porque deixamos o campo livre ao disparate. Para fixar e policiar a norma linguística, as sociedades evoluídas costumam usar academias ou congéneres, mas a Academia portuguesa não só não é uma academia de língua, e sim de ciências, como é uma instituição que desde o séc. XVIII, em que foi fundada, tem consistentemente construído um historial de abordagens erradas aos problemas da língua, incluindo a norma.

Onde há conhecimento linguístico, ensino e investigação, é nas universidades. Mas as universidades não são reconhecidas como instância normativa, a nível do Estado e da sociedade. É certo que, a título individual, muitos linguistas são convidados a dar opiniões sobre isto e aquilo. Muitas vezes não são tidos em conta, outras vezes são. Mas, de uma forma estruturada, de uma forma pública, não há uma autoridade reconhecida que seja ouvida e seguida pelas instituições do Estado em tudo o que toca, não apenas à gestão quotidiana das incidências normativas e regulamentares, mas também ao pensamento estratégico sem o qual não há política de língua. Não poderemos continuar a viver no embalo de que o português é uma maravilhosa língua que cada vez mais milhões de meninos nascem a saber falar.


Cristiana – Há pouco falamos na APL. Na condição de membro fundador, que balanço faz do trabalho desenvolvido por esta associação em mais de 30 anos? Manteve-se fiel aos princípios que presidiram à sua fundação? Tem sabido adequar-se ao contexto (científico, societal) em que se insere?


Ivo Castro – Fui o coordenador da comissão instaladora da APL. Na altura, discutimos questões como “O que vamos criar?”, “Vamos criar uma associação profissional ou uma ordem profissional?”, “Vamos fazer a ordem dos linguistas?”. Realisticamente e modestamente, isso foi tido como excessivo. Esta associação, em certas fases da sua história, tem tido uma vida apagada, noutras fases, não. Os presidentes mais recentes da associação têm sido das poucas vozes que têm aparecido em público a defender posições dos linguistas e têm feito isso muito bem, em nome da classe. Mas não sei se isso não poderia ser desenvolvido e aprofundado, não ao nível da associação, mas ao nível dos linguistas jovens, daqueles que têm problemas de resolução difícil: além do problema de vir a arranjar emprego, têm o problema de se afirmar no sítio onde estão. Talvez pudessem ser desenvolvidas algumas medidas modernas, como o recurso a intervenções nos media ou nas redes sociais, coisas que pessoas da minha geração não sabem fazer, ou fazem desajeitadamente.

Vejam o exemplo do Ciberdúvidas, que é uma instituição mais respeitada do ponto de vista normativo do que a Academia das Ciências, porque é acessível e dá respostas. Se dá respostas certas ou erradas é outra questão, pois, quando se entra no jogo do certo ou errado, sabe-se que alguém sai descontente. Mas é um recurso que as pessoas conhecem e gostam de consultar.


Carlos – Como vê o futuro da Linguística?


Ivo Castro - Perfeitamente, não sei. A Linguística tem sido desenvolvida em associação com outras disciplinas, e tem-se dado bem com as companhias que escolhe. Começou no Romantismo quase se confundindo com a história literária; chamava-se então Filologia. Entrou no séc. XX pelo seu pé, como disciplina científica autónoma, mas não deixou de namorar as ciências sociais e as ciências exatas e agora tem interesses comuns com a medicina, sempre com resultados positivos a apresentar. Daí para a frente, o quê? Não sei, mas o que importa é, numa pergunta sobre o futuro da Linguística, sentirmos que estamos a falar de coisas que existem e não a fazer retórica.

Que o futuro certo da nossa ciência não faça perder de vista muitos dos estudos linguísticos que foram ficando para trás. Alguns desses estudos correm o risco de serem dados como obsoletos, porque concluídos. Mas outros estudos ainda têm muito para dar, e oferecem materiais e oportunidades nobres de servir a sociedade e a cultura aos investigadores que saibam resistir ao fascínio das últimas novidades.


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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.

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