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Entrevista: Prof. Dr. Augusto Buchweitz (PUCRS)

Entrevista realizada por: Ana Clara de Araújo Marques, Ana Magally Pereira de Freitas, Layne Maria dos Santos Batista Lira (UFPB)


1) Como surgiu o seu interesse pela área da neurociência da linguagem e como foi sua trajetória acadêmica até decidir e começar a atuar nessa área?


Não teve um momento específico, foi um interesse construído ao longo do doutorado e que foi impulsionado pela oportunidade de fazer doutorado sanduíche (esta oportunidade foi fundamental). Na época, não havia pesquisa com neuroimagem funcional e linguagem no Brasil. A partir do doutorado, continuei por alguns anos como pós-doutor na área, e isso foi dando o rumo nos meus interesses de pesquisa.


2) A partir de suas experiências e pesquisas, o que você pode nos contar a respeito do início dos estudos da neurociência da linguagem?


Tive que aprender estatística, anatomia cerebral e a física da ressonância; e aprendi também o quanto a interação entre áreas é fundamental para a pesquisa da linguagem. As perspectivas sobre fenômenos, quantitativas e biológicas ajudaram a entender o valor desse contato e de trabalhar com pesquisadores e alunos de diferentes áreas.


3) Qual a função das medidas neurofisiológicas, eletromagnéticas e eletrodinâmicas no âmbito da ciência da linguagem? Você poderia nos explicar, um pouco, sobre o funcionamento de cada uma?


A neurociência da linguagem começou com estudos de pacientes e do cérebro após a morte, como o paciente Leborgne, cuja sífilis afetou suas capacidades articulatórias. Paul Broca, após a morte de Leborgne, identificou uma lesão em uma região frontal do cérebro e assim o fez em diversos pacientes. Broca dá o nome à região de Broca, grosseiramente o equivalente a partes do giro frontal inferior esquerdo do cérebro, e que sabemos envolve-se em articulação da linguagem oral, bem como em processamento sintático. Wernicke, da mesma forma, estudou as dificuldades de compreensão associadas com lesão do giro temporal superior esquerdo; e antes mesmo dos métodos de imagem atuais, Wernicke postulava que esta região centralizava o input da compreensão da linguagem escrita e oral e, por meio do fascículo arqueado (o feixe de fibras que conecta as regiões da linguagem), distribuiria a informação para o resto do cérebro. Wernicke postulou este funcionamento do cérebro da linguagem antes de ter acesso a técnicas avançadas de imagem; e acertou o princípio.

A neurociência da linguagem evoluiu dos estudos de lesões, que ainda são feitos, para o estudo do cérebro in vivo, do cérebro sem lesões, com desenvolvimento típico ou atípico, com transtornos de aprendizagem ou do neurodesenvolvimento, e assim por diante. Nesse sentido, as técnicas de investigação não-invasivas, como potenciais evocados (que medem respostas eletrofisiológicas) e hemodinâmicas (que medem aumento de oxigenação) possibilitaram o estudo da relação cérebro-comportamento e a subsequente evolução da neurociência da linguagem. As técnicas eletrofisiológicas capturam sinais elétricos e, portanto, podem oferecer uma resolução temporal de milissegundos; perdem, entretanto, na resolução anatômica: potenciais evocados não servem para estabelecer a localização mais precisa da ativação. As técnicas hemodinâmicas, por sua vez, têm resolução anatômica que permite identificar exatamente as regiões envolvidas; entretanto, sua resolução temporal é associada a um processo mais lento, o aumento do fluxo sanguíneo para uma região do cérebro como consequência de maior atividade sináptica. A melhor combinação está no MEG (magnetoencefalograma), que combina resoluções temporais dos elestroencefalogramas e anatômicas comparáveis à ressonância; mas este sistema tem pouca aplicabilidade clínica e um alto custo de instalação e manutenção.

Estas técnicas permitem a investigação dos mecanismos cerebrais que subjazem a linguagem, permitem evidências para discussões sobre o domínio específico ou geral da linguagem na cognição humana, que podem valer-se de evidências sobre as regiões e os mecanismos neurais envolvidos com a linguagem no cérebro humano.

A linguagem em suas diferentes formas, como o texto narrativo, nos traz uma experiência que se inicia com o input da leitura (ou de escutar uma história, ver um filme); esta experiência depende do nosso cérebro que analisa a informação, associa o input da narrativa à memórias e conhecimentos prévios e nos permite construir a representação do texto, para chegar à sua compreensão. Com a neuroimagem podemos desvelar desde os processos fundamentais, como a decodificação e processos visuais específicos da leitura, aos processos mais superiores como a inferenciação; a partir de variáveis dependentes como correlatos neurais, aumento de magnitude de ativação, aumento de tecido cortical recrutado, diferença de latências, e de variáveis independentes de desempenho, transtornos, compreensão, desenvolvimento, podemos desvelar como o cérebro responde ou deixa de responder para as mais diversas questões científicas que intrigam a ciência da linguagem.


4) Como são feitas as pesquisas em pacientes para identificar as áreas afetadas no cérebro?


Depende do grupo clínico, do tipo de pergunta e do objetivo (pesquisa clínica, pesquisa básica, entre outros). A grande diferença é que transtornos do desenvolvimento e de aprendizagem podem ser estudados e entendidos a partir dos diferentes mecanismos mal-adaptativos ou diferentes estágios de desenvolvimento de funções e anatomia do cérebro; pode-se assim rebater o obscurantismo que aflige os transtornos, como a dislexia do desenvolvimento, que não tem fenótipo nem lesão cerebral claramente associados (apesar de já no final da década de 70, Galaburda ter identificado alterações anatômicas e de migração neuronal em cérebros de adultos disléxicos, post mortem).

Podemos nos valer do exemplo da medicina, que nos séculos 18 e 19 sofria com o equivocado entendimento sobre os transtornos psiquiátricos que, como estes da linguagem, não tem fenótipo nem lesão. A depressão, até o trabalho inovador de Philippe Pinel (final do século 18), assim como outros problemas de saúde mental, era tratada como desvio moral e de caráter, como fraqueza. Mas é somente no início do século 20, com o trabalho do psiquiatra alemão Emil Kraepelin que se começa a investigar a saúde mental a partir de suas origens biológicas. Atualmente, não se discute mais se depressão e saúde mental são desvios de caráter; há evidências robustas de como estes transtornos afetam o funcionamento do cérebro. Da mesma maneira, a ciência da linguagem e dos seus transtornos, livra-se de opiniões e pode valer-se de evidências a partir de métodos avançados para entender as bases neurais de transtornos de aprendizagem, por exemplo.

A dislexia do desenvolvimento até muito recentemente, e não muito diferente dos transtornos de humor, enfrentava questionamentos sobre não existir ou resultar de desvios de caráter, esforço ou educação; rótulos estes de origem obscurantista e sem embasamento científico (e que ainda existem fora da comunidade científica, assim como ainda existem rótulos sobre doenças psiquiátricas). A ciência da linguagem em interação com a neurociência em geral, passa a esclarecer os períodos ótimos para aprender a ler, os processos cognitivos diferenciados para aprender uma segunda língua como criança e como adulto a partir de suas bases neurobiológicas, entre outras questões. Os mecanismos desvelados esclarecem que a leitura não é natural para o cérebro humano, resulta em grandes alterações no seu funcionamento; a aprendizagem de uma segunda língua como criança ou adulto vale-se de diferentes substratos neurais que, por sua vez, associam-se com as diferentes naturezas do aprendizado natural como criança e instruído como adulto. Penso que permitiu-se evoluir de uma ciência de poltrona para uma ciência que cada vez mais quer entender como e porquê os fenômenos acontecem.


5) Como se dá o processamento da linguagem em um paciente diagnosticado com afasia? Como acontece o tratamento? Existe uma cura?


Esta não é minha área de pesquisa, portanto não posso formular uma resposta sobre tratamento; cura, lembremos, seria para doenças. Mas a afasia pode ser tão variada como as lesões que a ocasionam. Lembremos que lesões tem diferentes origens e não se calham de ficarem perfeitamente restritas a uma região. De qualquer maneira, de modo geral, existem afasias cujas lesões podem afetar mais o sistema articulatório ou de compreensão dependendo de seu tamanho e gravidade.


6) Você já desenvolveu pesquisas sobre os desvios da linguagem? Se sim, houve algum momento em que você sentiu um nível maior de dificuldade por estar estudando indivíduos não típicos?


Sim, trabalhamos com transtornos de aprendizagem e, mais especificamente, com a dislexia do desenvolvimento. A maior dificuldade de investigar a dislexia do desenvolvimento no Brasil está associada ao baixo índice de sucesso em alfabetização no país. A dislexia do desenvolvimento é um transtorno de origem neurobiológica que se caracteriza por uma dificuldade inesperada (eis a palavra chave) de aprender a ler com acurácia e fluência. No Brasil, com ¼ das crianças de quarto ano escolar se apresentam com dificuldades de ler uma simples frase, portanto a dificuldade de leitura não é exatamente inesperada e a construção do entendimento das diversas causas da dificuldade de leitura é multifatorial. Portanto, precisa-se estabelecer uma avaliação e investigação multidisciplinar com a criança e a família; recentemente publicamos o primeiro artigo de neuroimagem com crianças brasileiras com dislexia, bem como o protocolo de testes e avaliações para o diagnóstico de dislexia com crianças brasileiras; algumas referências (Buchweitz et al., 2019; Costa, Toazza, Bassoa, Portuguez, & Buchweitz, 2015; Toazza, Costa, Bassôa, Portuguez, & Buchweitz, 2017)


7) Durante as suas pesquisas qual foi a sua experiência mais marcante? Você poderia dividir conosco um relato dessa experiência?


Certamente foi e continua sendo a frustração de encontrar tantas crianças de 9-11 anos que não aprenderam a ler e poderiam ter aprendido; é frustrante conviver com esta realidade sabendo que poderíamos virar este jogo com um trabalho desde a pré-escola para a construção dos conhecimentos base para a alfabetização (como o vocabulário e consciência fonológica) e com a alfabetização implementada com políticas baseada em evidências. Ouve-se muito que cada criança tem seu tempo; na alfabetização, o tempo é do cérebro. Ponto final.


8) Qual interferência que a dislexia causa no processo de aprendizagem? Quais são as metodologias utilizadas para investigar os processos cognitivos nos disléxicos?


A dislexia não precisa ser um obstáculo maior do que é; seus sinais de risco podem ser identificados precocemente a partir de marcos da linguagem oral (atraso ao falar, fala infantilizada persistente), e seu diagnóstico ajuda a estabelecer práticas educacionais que facilitem o estudo para este aluno. A etiologia da dislexia é genética. Na Finlândia, sabe-se há gerações quem é disléxico e quando um dos pais foi diagnosticado com o transtorno, já se observa os filhos para os sinais de risco. Quanto antes começa-se um trabalho de reforço, mais se pode dirimir a severidade da dislexia. Vemos este efeito claramente no ambulatório de aprendizagem, as crianças que chegam com 10-11 anos sem diagnóstico algum, estão lendo entre 15-20 palavras por minuto. Uma fluência incapacitante para a compreensão textual. No nosso grupo, associamos o estudo e diagnóstico da dislexia do desenvolvimento com a neuroimagem, como indiquei acima.


9) Como a neurociência da linguagem pode contribuir no processo de aprendizagem de línguas?


De modo geral, para a aprendizagem multilíngue, já contribuiu para o entendimento dos diferentes processos envolvidos com adquirir e aprender uma língua em diferentes momentos da vida. A conhecida facilidade de uma criança em aprender uma segunda língua, versus a dificuldade de um adulto principalmente com o reconhecimento e articulação de sons de uma língua estão diretamente relacionados com a plasticidade do cérebro em regiões fundamentais para a aquisição da linguagem. Depois da infância, esta plasticidade reduz significativamente, resultando na necessidade de se envolver processos estratégicos e adaptativos de aprendizagem de uma segunda língua como adulto.


10) Em síntese, como acontece o desenvolvimento da leitura no cérebro?


A aprendizagem da leitura é um processo gradual e que depende de estímulos desde a infância. A alfabetização, que entendemos como o processo de ensinar a decodificar o código com precisão e fluência é facilitada por conhecimento de vocabulário e por consciência fonológica. Isto significa: ler para a criança. Com a leitura para a criança, expõe-se ela a todos os sons da língua, a mais vocabulário do que nas interações do dia a dia. Esta base é fundamental para o processo subsequente de alfabetização e criação do hábito de leitura. A compreensão leitora e o ler para aprender, os objetivos maiores, finais e definitivos, dependem de toda esta construção de conhecimentos e habilidades linguísticas. A compreensão leitora evidentemente não evolui por mágica, nem porque queremos e temos boa vontade em sala de aula ou em casa. Principalmente para as crianças mais vulneráveis, depende do enriquecimento do estímulo da linguagem oral e do meio, com livros e com a leitura destes. Para o cérebro, a leitura vai depender de um processo de associação entre grafemas e fonemas (a forma escrita e os sons), bem como de um processo de adaptação ao processamento da forma visual das palavras e letras. Formam-se novos caminhos no cérebro, um deles, a rota fonológica, que subjaz o processo de aprendizagem das relações unívocas entre fonemas e grafemas (as relações regulares, de palavras regulares que podem ler sidas acuradamente apenas com as regras básicas). Da mesma forma, a aprendizagem da leitura depende de uma adaptação do cérebro para a forma visual das palavras. É somente com as palavras que o nosso cérebro vai ter de aprender a se importar com a diferença entre a orientação esquerda-direita, por exemplo, de um objeto visual. No livro “Neurônios da Leitura”, o neurocientista Stanislas Dehaene ilustra esse processo muito bem, mostrando uma foto da Mona Lisa olhado para o lado inverso do que ela realmente está no Louvre; e da estátua da liberdade segurando a tocha com a mão trocada. Identificamos ambos sem problemas, e a maioria nem percebe a diferença. Entretanto, na leitura, b e d são imagens espelhadas e tem significados diferentes. O cérebro precisa adaptar-se especificamente para a leitura, e quando batemos o olho numa palavra, direcionar o processamento visual desta informação por uma rota específica que passa pela região occipitotemporal do cérebro, cunhada de área da forma visual das palavras. A partir destes processos básicos, a compreensão leitora e os processos superiores envolvidos, como inferenciação, passam a valer-se de uma rede distribuída de regiões do cérebro que envolvem associação com conhecimentos prévios, processamento e ordenamento de informações, memória operacional, e assim por diante.


11) Onde e como surgiu o projeto ACERTA? E qual o objetivo dele em relação a Neurociência da Linguagem?


O projeto surgiu a partir do mote de ajudar a resolver problemas brasileiros com evidências brasileiras. A grande parte das evidências na ciência da leitura e, principalmente, na neurociência da leitura, é importada. Existem questões particulares para o diagnóstico da dislexia do desenvolvimento no Brasil, principalmente a partir da extrema vulnerabilidade de muitas crianças para as quais acaba não sendo tão inesperada a dificuldade de leitura. Surgiu, assim, para contribuir para a neurociência e ciência da leitura tentando levar em conta a nossa realidade e os vetores positivos e negativos para o desenvolvimento da leitura característicos do Brasil.


12) Professor, com a sua experiência internacional, qual a grande diferença entre os estudos no exterior e aqui no Brasil na área da Neurociência da Linguagem?


Para não cair na mesmice de falar em diferença de magnitude de investimentos, desburocratização e abertura para fundos de pesquisa de diferentes origens além do investimento público, o que mais me preocupa é a ausência de formação científica, principalmente empírica, nas diferentes licenciaturas e humanidades. A neurociência, ou ciência da linguagem evolui a partir das pessoas. Comprar equipamentos não é o mais difícil. Com esforço, financiamento se consegue. As pessoas e seus cérebros, estas sim, são o maior valor da ciência. O pensamento científico, questionador e que busca resolver problemas que nos importam não vai emergir do vácuo; não se constrói pensamento científico e cientistas com mágica.


13) O que você poderia indicar ou sugerir para os iniciantes que buscam esta área de estudo para pesquisas?


Eu diria: Se você quer ser cientista, tem que ter curiosidade de aprender, criar uma casca-grossa para errar e ouvir críticas e saber que, sim, você pode estar errado e errar e refutar ideias faz parte da ciência. Dogmas não fomentam pensamento científico nem ciência.

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Agradecemos ao professor Dr. Augusto Buchweitz pela disponibilidade em responder nossas perguntas.

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