1) Qual foi o fator determinante que o motivou a seguir os estudos da linguística na área do funcionalismo, pode nos contar um pouco da sua trajetória?
Muitas das nossas opções são, na verdade, fruto de encontros que temos durante a vida acadêmica. Foi assim comigo: como aluna da Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, me aproximei do Grupo de Estudos Discurso & Gramática, da Pós-Graduação em Linguística da mesma universidade, para poder embasar teoricamente minha pesquisa sobre as repetições em diálogos do Projeto NURC. O grupo, liderado por Sebastião Votre na época, era de vertente funcionalista norte-americana, fui chegando, sendo bem recebida e lá fiquei. Depois, ao concluir o doutorado, já docente da UFF, fundamos uma outra sede do grupo em Niterói, que já tem mais de 20 anos, em plena atividade acadêmica.
2) De que forma a teoria funcionalista é aplicada em sua pesquisa nos dias de hoje?
Essa base teórica fundamenta as descrições e análises que fazemos; hoje, fruto do diálogo com a abordagem construcional, de vertente cognitivista, trabalhamos com a chamada Linguística Funcional Centrada no Uso, como em Traugott e Trousdale (2013), Bybee (2010; 2015), Hilpert (2014), entre outros. Nessa perspectiva, partimos da concepção de que a língua é uma virtualidade, uma rede de construções, interconectadas vertical, horizontal e transversalmente. Os usos linguísticos e seus contextos de ocorrência, tão caros à pesquisa funcionalista, são hoje por nós vistos como instâncias de construções, de natureza lexical ou gramatical, fixadas na comunidade linguística por frequência de uso, além de motivações de ordem cognitiva e comunicativa.
3) Com base na proposta funcionalista, em que a língua desempenha funções externas ao sistema linguístico, e que essas funções influenciam a organização interna desse sistema, como a teoria funcionalista poderia ser explorada no ensino de língua portuguesa?
Se nos detivermos na leitura da atual LDB e dos Parâmetros Curriculares para a Educação Básica, podemos dizer, sem sombra de dúvida, que a orientação funcionalista norteia a concepção de linguagem e de língua desses materiais. Os fundamentos funcionalistas se encontram em vários pontos dos documentos referidos, por exemplo: a) na defesa de que o ensino de língua deve ter o texto como ponto de partida e de chegada (na concepção de que pressões discursivas moldam a gramática); b) no destaque para o ensino inicial do que é mais produtivo e regular no uso linguístico (de acordo o viés prototípico que marca as categorização linguística no Funcionalismo e com base no princípio de marcação categorial); c) na observação de que a seleção das estratégias linguísticas na elaboração de textos deve levar em conta as condições pragmático-comunicativas que moldam a interação, entre outros.
4) Pode-se afirmar que o funcionalismo se caracteriza por uma concepção dinâmica do funcionamento das línguas, em que a gramática é vista como um organismo maleável, que se adapta às necessidades comunicativas e cognitivas dos falantes. Tendo em mente o conceito de gramaticalização, como se dão os estudos dessa vertente na sua área de atuação? E como ela explicaria, por exemplo, a mudança ortográfica de uma determinada língua, há alguma relação?
Hoje, por conta da incorporação do tratamento construcional no Funcionalismo, os estudos que fazemos assumem a construcionalização (criação de um novo pareamento de forma e função) e a mudança construcional (alteração num dos eixos – da forma ou da função) como foco de pesquisa, nos termos de Traugott e Trousdale (2013). Assim, a gramaticalização, atinente ao que hoje nomeados de Funcionalismo Clássico, é incorporada segundo essa mais recente perspectiva funcional; nesse sentido, continuamos investigando a mudança linguística, em perspectiva diacrônica e sincrônica, mas em viés construcional, como em Goldberb (2009; 2006; 1995), Croft e Cruse (2004), entre outros.
Quanto a questões ortográficas, trata-se, na verdade, de outro campo de discussão, dado que as mudanças nesse nível ocorrem mais termos de convenção oficial. Numa sociedade letrada como a brasileira, com o sistema educacional em funcionamento em todos os seus níveis de ensino, por exemplo, dificilmente uma mudança linguística atinge a esfera ortográfica. O que pode ocorrer, em contextos mais distensos ou informais, são usos de formato erodido, como no caso de marcadores discursivos como né, tá legal e outros.
5) O funcionalismo demonstra interesse em trabalhar a linguagem como instrumento de interação social, analisando a relação entre linguagem e sociedade. Enquanto isso, o chamado “sociocognitivismo” (da linguística cognitiva), enfatiza a importância do contexto nos processos de significação e o aspecto social da cognição humana, focalizando a linguagem como uma forma de ação. Considerando as duas teorias, que tipos de relações/interfaces existem entre a linguística funcionalista e a cognitiva, no que diz respeito a como o sistema linguístico revela o funcionamento da mente humana e como isso se reflete na experiência com o mundo?
Como já mencionado, no caso do Funcionalismo de vertente norte-americana, o diálogo mais estreito com o Cognitivismo ocorre na base da incorporação aos estudos funcionalista do aparato teórico da construção gramatical. Nós, no D&G em suas três sedes nacionais, não nos consideramos, de modo algum, cognitivistas, pois somente nos apropriamos do suporte teórico construcional, mesmo assim de parte dele, para a pesquisa da língua em uso. Continuamos, desse modo, com nossas especificidades face aos cognitivistas, a saber: a) mantemos a distinção entre léxico e gramática, ou seja, assumimos que há categorias mais plenas de conteúdo referencial, como nomes e verbos, e outras de conteúdo procedural ou mais gramatical, como conectores e marcadores discursivos; b) continuamos nos perguntando de onde surgem, como são forjadas as construções de uma língua; estamos sempre interessados em saber que contextos motivam a fixação de novos esquemas, lexicais ou gramaticais, no constructicon, ou seja, na rede construcional; c) assumimos que a rede é hierárquica e interconectada, estabelecendo-se relações verticais (na base de esquemas, subesquemas e microconstruções), horizontais (por intermédio de relações degenativas e de aloconstruções, nos termos de Van de Velde (2014) e Cappelle (2006), respectivamente), e transversais.
6) O estudo da marcação no funcionalismo tem como ideia-chave “o contraste entre dois elementos de uma dada categoria linguística, seja ela fonológica, morfológica ou sintática. Um entre dois elementos que se opõe é considerado marcado quando exibe uma propriedade ausente no outro membro, considerado não-marcado.” (Martelotta, 2008). Levando em conta essa teoria, e o fato de que as formas não-marcadas tendem a ser mais corriqueiras no exercício da fala, como a diferenciação dessas formas ajuda no exercício do ensino? E qual delas se torna mais expressiva em um contexto formal?
Em termos de ensino, preconizamos que deve ser iniciado com foco nos elementos não-marcados, ou seja, naqueles que, por sua alta frequência, menor peso estrutural e esforço cognitivo, são mais rápida e facilmente acessados e identificados pela comunidade linguística. Quando os PCNs da Educação Básica nacional preconizam que é preciso levar em conta o que é produtivo nos usos linguísticos, que os membros categoriais não têm a mesma identidade e visibilidade, consideramos que aí está a defesa de um ensino que toma como ponto de partida o que é geral e consensual, o não-marcado na língua.
7) Sobre a Iconicidade no estudo do funcionalismo, mais precisamente sobre o subprincípio da quantidade, em que quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma, ou seja, que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão (Slobin, 1980), é possível associar o cerne dessa teoria à realidade das salas de aula, em que professores, quando muito complexos na transmissão da teoria, não obtém bons resultados, enquanto que os mais focados em associações simples e práticas tem uma experiência de ensino mais efetiva?
Essa teoria pode ser associada não só à sala de aula mas a todos os contextos de interação social. Em geral, as pessoas “carregam” no formato de seu texto para serem mais expressivas, persuasivas e convincentes no cotidiano. O discurso didático, por exemplo, até por sua natureza e propósito, tende a ser muito reiterativo; via de regra, os professores repetem ou parafraseiam seu texto, no intuito de os alunos compreenderem o conteúdo ministrado. A iconicidade, como princípio fundamentado em bases cognitivistas experienciais, está presente na nossa vida.
8) O funcionalismo compreende a língua no seu uso social, focando a interação por meio da linguagem. Como você (e a área de estudos) se posiciona quanto ao certo e o errado dentro do ensino da língua portuguesa?
Há tempos, a Linguística já vem propondo (e alguns gramáticos tradicionais também, como Bechara, por exemplo) que o binômio certo x errado deve ser substituído por adequado x inadequado. Como funcionalistas, dizemos que os usuários se expressam de uma maneira ou outra motivados por pressões de, pelo menos, três ordens: as pragmático-comunicativas, as cognitivas e as estruturais, atinentes estas à própria configuração da gramática. Portanto, diante de um determinado uso linguístico, a pergunta que fazemos é que propósitos e motivações levaram a esse uso, quais os efeitos de sentido advindos do mesmo. Estamos interessados não em classificar o que é certo e o errado, pois isso a tradição gramatical já faz, em sua vertente prescritivista; nosso foco é o dado, a língua em funcionamento, seus contextos de uso.
9) O que você vislumbra, em termos de pesquisa, na área do funcionalismo para os próximos anos? Que novidades podemos esperar nesse campo da linguística?
Penso que a vertente atual de nossos estudos, com base na Linguística Funcional Centrada no Uso, tem uma vasta e diversificada agenda de pesquisa para os próximos anos. Uma das vertentes é concorrer para a descrição da rede construcional do português, estabelecendo os linkes de herança entre os nós da rede, em termos verticais, horizontais e transversais. No caso dos horizontais, responsáveis pela variabilidade, pela competitividade linguística, a tarefa está mais atrasada e muito deve ser feito. Outro investimento é na abordagem histórica, na detecção de micropassos (ou neoanálises) que levam à construcionalização gramatical. Mais uma vertente de pesquisa é adaptar ou refinar os pressupostos teóricos da pesquisa da mudança construcional, quase em sua totalidade de vertente histórica, para a pesquisa sincrônica da construção, em nível lexical ou gramatical. Uma outra vertente é fornecer subsídios para o ensino de português na Educação Básica do país. Temos ainda que investir mais no diálogos com a Psicolinguística, para a elaboração de testes de aceitabilidade de determinados padrões de uso; na UFF, esse diálogo já tem sido feito com o Gepex, liderado pelo prof. Eduardo Kenedy, que, inclusive, co-orientou tese de uma de nossas doutorandas, com suporte fundamental nessa área.
10) Quando a abordagem construcional se insere nos estudos funcionalistas aqui no Brasil, e o que você acha que essa abordagem tem contribuído para as pesquisas na área do Funcionalismo?
Essa inserção ocorre mais efetivamente na primeira década do século XXI, tendo em Traugott e Trousdale (2013) sua fonte maior. Hoje, nas três sedes do D&G (UFRJ, UFF e UFRN), praticamos a Linguística Funcional Centrada no Uso, rótulo que assumimos para nos referirmos a essa recente abordagem. Nomeamos, de outra parte, os estudos anteriores como Funcionalismo Clássico, que não está banido da pesquisa, mas hoje surge redimensionado com a incorporação da abordagem construcional.
Em termos de contribuição, pensamos que o Funcionalismo, nessa nova fase, vincula de modo mais efetivo os eixos da forma e do sentido, conferindo maior rigor às análises da língua em uso. Essa, por sua vez, passa a ser vista como lócus de instanciações construcionais, dos constructos propriamente ditos, dos tokens empiricamente atestados nas interações.
Assim, em nível de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, temos orientado pesquisas que concorrem tanto para a descrição e análise de parte da rede construcional do Português quanto para a captação dos micropassos, na história da língua, que derivaram na configuração atual das construções da língua. Estamos também refinando pressupostos teóricos, numa passo mais avançado, para além da descrição e da análise empírica.
11) Ainda com base na abordagem construcional adotada pelo Funcionalismo, pode destacar e descrever brevemente algum trabalho específico que estabeleça relação entre essa abordagem e o ensino?
Como já nos dizia nosso mestre e fundador do D&G, Sebastião Votre, para que seja estabelecida relação entre a pesquisa linguística e o ensino de língua, é necessário que tenhamos resultados significativos da pesquisa, em termos quantitativos e qualitativos, para, a partir daí, estabelecer esse vínculo com a sala de aula da Educação Básica. Como o diálogo do Funcionalismo com a abordagem construcional da gramática é relativamente recente no país, ainda não temos uma efetiva transposição dos resultados obtidos nessa interface. Por outro lado, temos publicações recentes no grupo que levam em conta essa relação, como o capítulo de Furtado da Cunha e Lacerda (2017) e o de Oliveira 2017).
12) Como você o papel do professor Dr. Mário Eduardo Toscano Martelotta no desenvolvimento do Funcionalismo no Brasil?
Martelotta teve e ainda tem um papel fundamental no desenvolvimento dos estudos funcionalistas no Brasil e no âmbito do D&G em nível nacional. Com sua maneira competente, simples e objetiva de escrever, divulgou as bases da teoria funcionalista em muitas publicações, com as de (2008) e (2011). Martelotta nos deixou no ponto alto de sua vida acadêmica, com produção intelectual que até hoje é referência para todos nós, como destacado na obra em sua homenagem, publicada por Cezario e Furtado da Cunha (2013). O D&G dá continuidade à pesquisa dos adverbiais, iniciada por Martelotta, agora vinculada à abordagem construcional da gramática. Seu legado é imenso e se mantém como uma referência para os que fazem pesquisa funcionalista em nosso país.
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Agradecemos à professor Drª. Mariângela Rios pela disponibilidade em responder nossas perguntas.
Referências
BYBEE, J. Language, Usage and Cognition. New York: Cambridge University Press, 2010.
_____. Language Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
CAPPELLE, B. Particle placement and the case for “alloconstructions”. Constructions SV1-7/2006
CEZARIO, M. M; FURTADO DA CUNHA, M. A. (org). Linguística centrada no uso – uma homenagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2013.
CROFT, W; CRUSE, D. A. Cognitive Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
FURTADO DA CUNHA, M. A; LACERDA, P. F. A. Gramática de construções: princípios básicos e contribuições. In: OLIVEIRA, M. R; CEZARIO, M. M. (org). Funcionalismo linguístico: vertentes e diálogos. Niterói: Eduff, 2017, p. 17-46.
GOLDBERG, A. Constructions: a construction approache to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
_____. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.
_____. The nature of generalization in language. Cognitive Linguistics 20–1, 2009, p. 93–127.
HILPERT, M. Construction grammar and its applications to English. Edinburgh Textbooks on the English Language – Advanced, 2014.
MARTELOTTA, M. E. (org). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008).
MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011.
OLIVEIRA, M. R. Linguística funcional centrada no uso e ensino. In: CASSEB-GALVÃO, V; NEVES, M. H. M. (org). O todo da língua – teoria e prática do ensino de português. São Paulo: Parábola, 2017, p. 15-34.
TRAUGOTT, E; TROUSDALE, G. Constructionalization and constructional changes. Oxford: Oxford University Press, 2013.
VAN DE VELDE, F. Degeneracy: The maintenance of constructional networks. 2014.
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