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Entrevista: Prof. Dr. João Veloso (Universidade do Porto)


Entrevista publicada no Volume 11 nº 1 (2022) da Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto – Revista elingUP (<https://ojs.letras.up.pt/index.php/elingUP/article/view/12930/11830>).


O Professor Doutor João Veloso é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1990, onde se tornou mestre em Linguística Portuguesa, em 1996, e doutor em Linguística, em 2004. É atualmente professor nessa mesma instituição, conduzindo investigação nas áreas de Fonologia, Morfologia e Fonética. Entre 2008 e 2022 foi coordenador do Centro de Linguística da Universidade do Porto. Criou e mantém, desde 2008, o Arquivo Dialetal do CLUP, um arquivo de amostras de diferentes dialetos do português recolhidas ao longo de cerca de vinte anos.

Foi presidente da Associação Portuguesa de Linguística entre 2012 e 2016. Entre 2018 e 2022, desempenhou o cargo de Pró-Reitor da Universidade do Porto, assumindo as pastas da Promoção da Língua Portuguesa e Inovação Pedagógica. Com a inauguração do Instituto Confúcio da Universidade do Porto, em 2019, tornou-se também o primeiro diretor desse centro. O Professor João Veloso já apresentou muita da sua investigação em encontros, palestras e conferências um pouco por todo o mundo, tendo tido um preponderante papel na divulgação do português e principalmente da posição de relevo que esta língua tem a nível internacional. Tem publicadas dezenas de artigos científicos em revistas especializadas, capítulos de livros e também volumes completos dentro das suas áreas de principal interesse. Em 2011, deu aulas na Universidade de Porto Rico e, atualmente, encontra- se a dirigir o Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau.

A entrevista ao Professor João Veloso foi preparada pelos estudantes Ana Fidelis, Fábio Granja, Marina Salimon, Milena Santos, Renata Rodrigues, Tatiana Moura e Violeta Magalhães e realizou-se no dia 13 de junho de 2020 na Reitoria da Universidade do Porto. A equipa editorial e, muito particularmente, os membros da revista presentes na entrevista agradecem ao Professor João Veloso a extraordinária oportunidade concedida que será certamente motivo de deleite dos leitores.




Antes de mais, gostaríamos de agradecer o facto de o Senhor Professor ter aceitado o nosso convite, que foi particularmente especial, dada a relação que o Senhor Professor mantém com a revista elingUP.

A nossa primeira pergunta é a seguinte: os primeiros trabalhos do Senhor Professor datam do princípio dos anos 90 e incidem já sobre a fonologia do português. Nesse sentido, quais foram as principais motivações que o fizeram escolher a fonologia como a sua principal área de estudo desde tão cedo?


Antes de mais, olá a todos. A honra é toda minha. Eu tenho muito carinho por este projeto da elingUP, porque acompanho esta revista desde o primeiro número. A ideia partiu, em grande parte, de mim e de um grupo de pessoas que na altura trabalhavam comigo e teve o apoio unânime do CLUP desde o início. Os primeiros números eram muito artesanais! Eram feitos basicamente por mim e por um outro estudante, um colega vosso que entretanto já deixou a Universidade. Guardo muito boas memórias desse tempo. Que eu saiba, esta foi a primeira revista, publicada em Portugal, feita por e para estudantes de Linguística e acho que isso é uma marca distintiva importante. Eu sou um bocadinho nostálgico, dou sempre muita importância às memórias e às vezes até fico um bocadinho comovido quando vejo que a elingUP existe há tantos anos. Houve ali um período de interregno de publicações em que a revista esteve mais ou menos suspensa por vários motivos e, depois, quando ela foi reatada, eu fiquei muito contente e agora mais contente fico por ver que ela continua viva e muito ativa. E obrigado pelo convite! Quem está muito contente sou eu!

Os meus primeiros trabalhos creio que não eram bem na área da fonologia. Eram, sobretudo, na área da fonética, embora agora, relendo alguns deles – algo que, por razões que não vêm agora ao caso, tive de fazer recentemente (eu normalmente não releio os textos que publico) –, vejo que há ali algumas preocupações fonológicas em dois ou três deles. No entanto, no início, quando comecei na profissão académica, o que eu queria ser, na verdade, era foneticista. Isto tem a ver com vários motivos. A dada altura da minha vida, estudei um pouco de música, não a tempo inteiro, mas gostava muito de música e de estudar música. A dada altura, muitos anos antes de entrar na faculdade, até ponderei a hipótese de estudar música mais a sério, coisa que nunca sucedeu, felizmente!... para a música.

Entretanto, fui aluno de Fonética da Professora Doutora Maria da Graça Pinto e o programa de Fonética que nós tínhamos na faculdade, naquela altura, que tem as áreas que ainda hoje são mantidas no ensino da Fonética aqui na FLUP, tinha uma forte componente de fonética acústica, que a maior parte dos meus colegas considerava intragável, mas de que eu gostava muito porque aquilo fazia uma certa ligação entre a acústica, o som em geral e a acústica musical. Depois, uma coisa que me atraiu muito na Fonética, no início, foi a parte mais científica, no sentido laboratorial e experimental, e tive a sorte de em 1992 ter tido, graças ao empenho da Professora Graça Pinto, uma bolsa do Instituto Sueco para estudar Fonética na Universidade de Estocolmo, com o Professor Francisco Lacerda. Portanto, houve ali uma série de condicionalismos que me levaram a ter uma verdadeira paixão pela fonética no início.

Eu lembro-me também de que em casa dos meus pais existia uma obra, que muitas famílias portuguesas tinham naquela altura, que era a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, que era a grande enciclopédia portuguesa e brasileira dos anos 70 e 80. Eu sempre gostei muito de ler. O meu maior prazer nas férias de verão, na adolescência, era ler. Eu lia dias inteiros. Eu acho que li mais naqueles anos do que depois, se calhar, no resto da minha vida e houve um verão em que eu li os volumes todos da Enciclopédia Luso-Brasileira, de A a Z, literalmente. Descobri que no meio de verbetes sobre personagens históricas, doenças de pele, datas históricas ou locais havia uns verbetes sobre línguas. Normalmente, línguas faladas no Brasil. Línguas que eu nem conhecia, também sobre línguas faladas em África ou na Austronésia. Os verbetes eram muito curtinhos, quase todos assinados por uma pessoa que eu só muito mais tarde é que vim a saber quem era, o Professor Herculano de Carvalho, da Universidade de Coimbra, que fazia num parágrafo muito curto uma descrição do que era uma língua: quais as suas principais características gramaticais, o número de falantes, quais os seus sons, etc. Na altura achei fascinante como é que se podia descrever uma língua tal como se descreve um objeto da realidade qualquer, uma espécie botânica ou algo assim. E esses verbetes tinham muita informação fonética. Falavam muito de noções fonéticas, que eu já conhecia vagamente das aulas de Português do ensino secundário e de que já gostava muito.

Eu lembro-me de quando se estudava o texto literário do século XVI ou até de períodos anteriores e víamos que as palavras do português no século XIII, XIV, XV, XVI, no século XVII, etc., não eram exatamente iguais, nem na grafia, nem na pronúncia, nem, por vezes, no significado, e aquilo atraía-me muito. Do programa de Português da altura faziam parte umas noções de fonética histórica que nunca mais esqueci: aférese, síncope, apócope. Eu gostava muito daquela forma de olhar para a língua como uma manifestação sonora entre outras, como o canto dos passarinhos ou o som dos oboés.

Há aqui uma mistura entre biografia e outras coisas, mas foi isso que me atraiu muito para a fonética no início. Foi, por um lado, a ligação a uma parte mais laboratorial e material no estudo da língua e, por outro lado, esta ligação da língua e das línguas às manifestações sonoras, que me agradam muito. Eu gosto muito de silêncio, aliás, preciso muito de silêncio, mas também gosto muito de som de qualidade, gosto muito de música, gosto muito de ouvir os passarinhos e a língua e o seu estudo fonético têm muito a ver com isso.

A minha transição para a fonologia dá-se mais tarde.




Se o Senhor Professor fosse convidado a explicar a um leigo o que é a fonologia e quais as principais atividades de um fonólogo, como o faria?


Primeiro, começaria por dizer que a fonologia é um ramo da gramática. Quando nós estudamos, descrevemos e identificamos explicitamente as propriedades de uma língua, no senso comum e não só (mesmo, por exemplo, quando eu vejo alguns manuais ou materiais didáticos para o ensino do Português), normalmente pensamos na descrição gramatical da língua como uma descrição sobretudo das propriedades morfológicas e das propriedades sintáticas: o que é um sujeito, uma voz passiva, um nome, um adjetivo, um nome contável ou não contável, etc. Porém, não nos lembramos de que antes de podermos ter nomes, relativas, passivas, etc., precisamos de ter expressão sonora dessas estruturas e que essa expressão sonora, a um nível mais teórico e mais abstrato, obedece a regras e a princípios sistemáticos que mudam com o tempo, que são coerentes, explicáveis, que interagem com os domínios da sintaxe, da morfologia, da semântica, da pragmática, etc. Portanto, eu começaria por dizer isso.

A fonologia é uma parte da gramática enquanto estrutura da língua e é a parte que se ocupa de como é que um produto fonético, isto é, um produto sonoro, pode ser aceite como um produto da língua A ou B, obedecendo a determinadas restrições, como por exemplo, o número de sílabas, padrões de acento ou combinação de fonemas. Uma forma relativamente simples e imediata de explicar isto é lembrar que, teoricamente, duas línguas podem ter exatamente as mesmas consoantes e as mesmas vogais, mas combinarem-nas de formas diferentes. Aliás, dito desta maneira talvez não seja imediatamente compreensível, mas pensemos nas línguas românicas, que, pelo menos ao nível das consoantes, têm inventários muito semelhantes, mas a forma como combinam essas é bastante diferente de língua para língua. Dou um exemplo muito simples: em português e em catalão existe uma consoante lateral palatal (/ʎ/).

No entanto, em português esta consoante só aparece em início de sílaba (e nunca em início de palavra); já em catalão, o /ʎ/ pode ocorrer em início ou em fim absoluto de palavra. A fonologia estuda estas questões, encarando-as como verdadeiras regras gramaticais. Portanto, a fonologia é um ramo da gramática. Eu gosto da palavra gramática e vou usá-la muitas vezes nesta entrevista. A gramática não morde, a gramática não faz mal nenhum, a gramática é aquilo que governa as estruturas básicas da língua e uma parte dela é constituída por estas regras gramaticais.




Muitas vezes a fonologia surge associada a outras áreas de estudo como a geolinguística ou a dialetologia, procurando-se o mapeamento ou a tipologia sincrónica de determinada língua. Contudo, gostaríamos de perguntar qual o posicionamento que o Senhor Professor adota em relação à importância de um simultâneo enquadramento histórico-comparativo nos estudos das línguas.


Essa pergunta é muito interessante, como todas, mas não é só a fonologia que estabelece uma relação com a evolução e com a variação. A variação linguística, seja em função do tempo, no caso da variação histórica, seja em função do espaço, no caso da variação dialetal ou geográfica, ou mesmo a variação social, num sentido mais amplo, pode manifestar-se em todos os domínios da dita gramática, da gramática de que eu estava a falar há pouco. Na fonologia também. Aliás, há um campo de estudos muito interessante, ao qual eu até gostaria de poder dedicar mais tempo - e espero um dia poder ainda fazê-lo (porque eu ainda tenho alguns planos para o futuro!) -, que é a chamada fonologia variacionista.

A fonologia, como qualquer disciplina da gramática, tem assim uma espécie de pulsão para conceber a língua como um sistema mais ou menos fixo. Isto acontece em todas as ciências. Um físico, quando estuda as partículas que compõem este tampo da mesa, também só pode avançar na compreensão da matéria, se conceber que, dentro da imensa variação que existe, existem aspetos que têm de ser, pelo menos, concebidos como fixos até um certo nível de análise. A fonologia, a sintaxe, a semântica, a morfologia também têm que o fazer, isto é, têm que conceber a língua como algo que é relativamente estável, do ponto de vista de propriedades minimamente regulares, como regras fundamentais, inventários de unidades, etc. E a fonologia faz isso.

Depois, há um segundo momento do estudo em que nós vemos que essas estruturas são moldáveis, são flexíveis, são adaptáveis. Quem estudou sociolinguística sabe que durante muitos anos o argumento clássico para a linguística não se ocupar muito da variação era o facto de a variação ser vista como caótica, imprevisível e assistemática, logo, não sendo passível de estudo científico. Porém, aquilo que a sociolinguística clássica veio mostrar é que essa visão é uma visão parcialmente falsa, pelo menos. Dentro da variação existem padrões, existem regularidades, existe uma forma de nós podermos estabelecer relações mais ou menos estáveis entre unidades e regras, que são minimamente cristalizadas na língua, mas que depois sofrem variação. Não podemos fugir deste tema e a fonologia é um dos ramos da linguística em que isso se passa. Se nós pensarmos bem, isto pode parecer um bocadinho presunçoso vindo de uma pessoa que estudou fonética e fonologia durante grande parte da sua vida, mas as principais disciplinas que contribuíram para o grande avanço e a grande afirmação científica da linguística no século XIX e início do século XX, pelo menos, foram a fonética e a fonologia.

No século XIX, com os histórico-comparatistas e os neogramáticos, a fonética, a explicação das alterações fonéticas, a reconstituição fonética do indo-europeu, etc., eram os grandes debates que se faziam naquilo que é uma espécie de pré- linguística. Depois, após o livro fundador de Saussure, em 1916, a primeira disciplina linguística a ganhar desenvolvimento, afirmação e até estatuto de subdisciplina linguística foi a fonologia, com Trubetzkoy, no Círculo Linguístico de Praga. Esquecendo agora essa última parte da fonologia, o que é que a fonética estudava? Era principalmente a variação. Portanto, a ligação entre a fonética e a fonologia com a variação é uma ligação muito, muito antiga. O que os histórico-comparatistas, no fundo, faziam no século XIX era o estudo da variação fonética, sobretudo da variação relacionada com a variação histórica.

Mas também não podemos esquecer uma disciplina muito importante na transição do século XIX para o século XX e que depois, com a instauração do programa linguístico, ganhou contornos novos, que foi a dialetologia, o estudo da variação dialetal. Nós temos, em Portugal, casos de dialetólogos que foram muito importantes até para afirmação dos estudos linguísticos em Portugal. Estou-me a lembrar do Adolfo Coelho e sobretudo do Leite de Vasconcelos. E o que é que, p. ex., o Leite de Vasconcelos fez (entre muitas outras coisas)? Mapeou, fez uma primeira cartografia completa da variação fonética e lexical ao longo do território. Portanto, a ligação da fonologia e da fonética à variação, que hoje tem expressão muito importante num campo teórico de que eu já aqui falei, que é a chamada fonologia variacionista, é muito antiga e muito produtiva. Não sendo a variação estranha a nenhum domínio do estudo gramatical, no caso da fonologia essa relação existe e é muito antiga, é fundadora e é fundadora da própria linguística.



Por via das aulas do Senhor Professor, e também pelas intervenções públicas que vem fazendo ao longo dos anos, sabemos que Noam Chomsky teve um papel fundamental no seu trabalho e no modo como se posiciona cientificamente. Para além de O Conhecimento da Língua, que sabemos ser a sua obra de eleição desse autor, que outras obras de Chomsky e da tradição generativa considera serem de leitura obrigatória para um estudante de Linguística?


Obrigado pela pergunta, que é também uma pergunta que nos prenderia aqui por algum tempo. Eu conheci o nome do Noam Chomsky, se não estou enganado, nas aulas de Introdução aos Estudos Linguísticos, enquanto aluno de licenciatura. Portanto, estamos a falar do ano letivo de 1986/1987. Vejam lá, o que já passou desde aí! Nessa cadeira foi minha professora uma anterior entrevistada da elingUP, a Professora Doutora Ana Maria Brito, que eu costumo dizer que foi a minha primeira professora de Linguística e, formalmente, foi mesmo. Foi talvez nas aulas da Professora Ana Brito que eu, pela primeira vez, ouvi falar do Chomsky num contexto em que o Chomsky era apresentado sobretudo como um sintaticista.

Depois, mais tarde, pela aprendizagem contínua que nós vamos tendo nesta vida fui descobrindo e redescobrindo o Chomsky e acho que li tudo o que o Chomsky escreveu, pelo menos até ao Programa Minimalista de 1995. O Chomsky que me influencia e que me formata é o Chomsky filósofo da linguagem. Nós sabemos que o Chomsky foi autor de dezenas ou centenas de estudos de descrição sintática, de acordo com modelos que o próprio foi reformulando ao longo da sua carreira, e que eu não acompanhei muito, porque nunca estudei muito a fundo no domínio da sintaxe generativa formal. A parte da obra do Noam Chomsky que eu admiro muito e que me formata enquanto linguista encontra-se, repito, nas obras do Chomsky acerca do que é a linguagem, o que é a faculdade da linguagem, o que é o objeto de estudo da linguística e, portanto, é o tal Chomsky filósofo da linguagem e o Chomsky epistemólogo da linguística que me interessa muito. Aí há ideias que eu creio que continuarão a marcar-nos por várias décadas.

A ideia de que a faculdade da linguagem realmente constitui ou corresponde a uma predisposição genética do Homo Sapiens, a ideia de que existe um sistema abstrato, ao qual Chomsky deu vários nomes, mas cuja designação mais conhecida será provavelmente a Gramática Universal, que restringe, que diz exatamente o que é que uma língua tem de ter e sobretudo o que é que uma língua não pode ter para ser considerada uma língua natural... Portanto, este tipo de ideias, que são anteriores a qualquer descrição linguística de um sintagma nominal ou de uma estrutura silábica, que estão vários níveis acima de um ponto de vista filosófico, se quisermos, são os contributos do Chomsky que eu consigo acompanhar e que me atraem muito.

O Conhecimento da Língua, de 1986, é talvez o livro mais importante para mim em linguística contemporânea. Há uma parte sintática nesse livro, devo dizer, que eu não consigo acompanhar muito bem: estou a falar dos capítulos “sintáticos” da segunda parte do livro. Este livro, aliás, ilustra bem aquilo que eu estava a dizer há pouco. Por um lado, mostra- nos o Chomsky sintaticista e, por outro lado, o Chomsky filósofo da linguagem (no livro, a ordem é a contrária). E os capítulos de sintaxe desse livro são capítulos que eu dificilmente acompanho, como já disse, porque entram em tecnicismos e em análises a cujo estudo eu nunca dediquei tempo suficiente. A mim interessa-me sobretudo a outra parte (a primeira).

Outros textos do Chomsky que eu considero marcantes são os de 1957 e 1965, as Estruturas Sintáticas e os Aspetos da Teoria da Sintaxe, pelo papel que tiveram no desencadeamento de um novo paradigma. Se nós pensarmos naquilo que Thomas Kuhn define como uma “mudança de paradigma”, o Chomsky operou uma verdadeira mudança de paradigma na Linguística nos anos 50 ao deslocar o objeto de investigação da linguística do estudo puramente descritivo dos dados para o estudo explicativo dos princípios subjacentes a esses mesmos dados. E esta é a grande ideia que eu recebo do Chomsky e da qual não abdico e que acho que ficará para a história científica, para a história da Humanidade.

Há aquele célebre artigo de 1959, em que o Chomsky critica e contradiz o Verbal Behavior do Skinner. Esse é talvez o grande texto da linguística chomskyana e da linguística por extensão. São textos que me marcaram muito. Nós vivemos até aos anos 50 na ideia de que a linguagem era apenas um comportamento externo, era apenas um conjunto de manifestações verbais externas, a aprendizagem da língua e a aquisição da linguagem era equacionada como imitação e, numa recensão crítica, Chomsky consegue desconstruir um edifício intelectual inteiro. São textos que me marcaram muito e que eu acho que ficam como património da Humanidade.

Dentro da gramática generativa - eu sei que ele agora está muito mal visto por motivos até ideológicos e políticos - eu sou ainda um leitor muito assíduo de Steven Pinker (na verdade, um psicólogo de base) e o seu livro O Instinto da Linguagem, de 1995 se não estou em erro, é também um livro que, não sendo um livro científico propriamente dito, mas um livro de divulgação, explica de uma forma muito cientificamente fundada que a maior parte das propostas científicas do chomskyanismo mais clássico são biológica e cognitivamente plausíveis. Há também um livro de um linguista português, o Professor Eduardo Paiva Raposo, chamado precisamente Teoria da Gramática. A Faculdade da Linguagem que faz uma apresentação muito completa e muito original do contributo do Chomsky para a nossa maneira de olhar para a linguagem e nos ajuda a compreender todas as ideias centrais da linguística teórica desenvolvidas à luz do pensamento generativista.

Já agora, se me permitem assim muito brevemente, o Chomsky tem um papel muito importante como crítico de algumas facetas do nosso modo de viver, das nossas organizações sociais, daquilo a que nós chamamos, às vezes um bocadinho catequeticamente, “o Ocidente”. Eu não sei como é que ele tem tempo, mas o Chomsky, além de ser um brilhante filósofo, um brilhante linguista e um brilhante sintaticista, é um espectador e um crítico muito atento da História Contemporânea. Vocês não são desse tempo, mas eu lembro-me, por exemplo, na altura em que Timor-Leste estava ocupado pelo exército indonésio com o beneplácito mais ou menos implícito de alguns países, como, por exemplo, os Estados Unidos da América, que o Chomsky era, nos Estados Unidos, das poucas vozes que se erguiam contra o apoio mais ou menos velado do governo americano à ocupação indonésia. Isso cria em mim uma reação de grande simpatia.

Em relação a algumas questões como umas certas formas de exploração capitalista mais feroz do ser humano por outros seres humanos, aspetos da organização social dos estados muito ao serviço dos lucros das grandes empresas, a questão dos negócios, da forma como nos Estados Unidos e noutros países (mas nos Estados Unidos sobretudo, porque o Chomsky é um americano que conhece bem o seu país), as políticas públicas são muitas vezes subordinadas a interesses das grandes indústrias, sejam farmacêuticas, sejam militares, sejam de outra natureza – o Chomsky tem sempre um olhar muito crítico e fundamentado, que dá origem a livros, conferências, entrevistas, etc. O Chomsky escreve mesmo muito sobre estas questões.

Aliás, o público em geral hoje conhece bem o Chomsky, ao contrário do que acontecia há alguns anos, e eu devo dizer também que, não alinhando obviamente em todas as críticas e em todas as posições que o Chomsky tem, também sou um leitor do Chomsky político. Eu considero que o Chomsky é uma das grandes figuras da Humanidade precisamente por isto, porque na sua ciência operou uma mudança de paradigma total e enquanto observador da realidade deixa textos muito reflexivos e muitos importantes que ficarão para a História do pensamento mundial. Eu não gosto muito da palavra génio, mas ele é sem dúvida um ser de exceção, é um ser excecional.



Como é que o Senhor Professor vê a importância de sair da caixa, mas também de olhar muito especificamente para certos pontos do conhecimento?


Ora bem, eu, tirando aulas de Fonologia que tive na Faculdade de Letras durante a minha licenciatura em que foram abordados tópicos fonológicos, nunca frequentei formalmente, enquanto estudante de doutoramento, p. ex., seminários só de Fonologia ou Fonologia Teórica e considero-me uma pessoa que sabe de Fonologia! Não estou a dizer que sei tudo de Fonologia, ninguém sabe tudo de nada, mas sei bastante de Fonologia. No entanto, a minha formação fonológica é muito autodidata. Esse autodidatismo trouxe-me algumas vantagens. Por exemplo, levou-me a descobrir correntes e autores que nem sempre são os mais representados na Universidade e na Universidade portuguesa em particular... Levou-me a ler textos mais antigos, que já tinham propostas que hoje estão a ser às vezes tomadas por alguns autores, levou-me a ler textos em várias línguas. É claro que no meu caso foi um autodidatismo muito suportado pelo “heterodidatismo” de outras áreas da linguística. Eu li muito sobre fonologia e investiguei muito sobre fonologia depois de ter aprendido, em aula e em contexto curricular, muitas matérias de outras áreas da linguística. O que o autodidatismo pode trazer é uma abertura de horizontes muito grande.

Quando uma pessoa frequenta um curso ou uma disciplina, seja em fonologia ou noutra área qualquer dentro ou fora da linguística, seguindo um plano curricular fixo, que tem determinados conteúdos e determinada distribuição temporal desses conteúdos, dificilmente conseguimos escapar dessa ementa. É quase como um menu de um restaurante. Quando nos aventuramos por nossa conta e risco num determinado domínio, somos muitas vezes até obrigados a tatear no escuro e a descobrir pontinhos de luz onde, às vezes, não suspeitávamos sequer que eles existiam. É claro que também existem riscos, tais como perder conhecimentos fundamentais ou perder tempo com hipóteses que foram já dadas como erradas. Mas seja através do autodidatismo, seja através de outra forma qualquer de obter conhecimento, o importante é mesmo o conhecimento: trabalhar o conhecimento, honrar o conhecimento, aprofundar o conhecimento. Ainda bem que o livro de Chomsky de que eu mais gosto se chama O Conhecimento da Língua. A palavra conhecimento para mim é uma palavra preciosa, é um tesouro mesmo.



Na tese de doutoramento do Senhor Professor, defendida em 2004, são apresentadas evidências da influência do conhecimento ortográfico sobre o conhecimento fonológico dos falantes nativos de Português. Quais julga serem as ilações mais importantes desse trabalho? E perante uma crescente desmotivação dos jovens perante a atividade da leitura, que consequências perspetiva para os falantes no que diz respeito ao seu conhecimento linguístico e, mais concretamente, fonológico?


A ideia da influência do conhecimento ortográfico sobre o conhecimento fonológico, portanto, aquilo que eu proponho nessa tese e que depois fui retomando noutros trabalhos, é que os sujeitos que conhecem a representação ortográfica das palavras têm representações fonológicas dessas palavras por vezes diferentes das dos sujeitos sem conhecimento da representação escrita e isso manifesta-se, por exemplo, a nível de tarefas de processamento da fala, processamento da linguagem, de manipulação de material linguístico. Esta é uma ideia um pouco anti- chomskyana, portanto há aqui uma certa contradição que eu atribuo, mais uma vez, a um certo autodidatismo que me ajudou a formar-me e a tornar-me no linguista que sou. Mas não só. Há uma outra coisa que eu ainda não referi, mas que, antes de avançar na resposta, gostaria de dizer.

Nós somos fruto das circunstâncias da nossa vida ao longo das várias etapas dessa vida e eu fui aluno de licenciatura e depois fiz a minha carreira praticamente toda na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde fui aluno de alguns professores na altura muito conhecidos e muito influentes. Nessa época era fomentado, de forma muito especial, um certo ecletismo: os alunos eram explicitamente incentivados a, perante um problema, conhecerem várias interpretações, por vezes contraditórias e conflituosas entre si, a verem que um problema ou uma questão em Ciência não tem unicamente uma e só uma explicação possível.

Nós eramos incentivados a não nos prendermos a uma teoria, a um autor, a um quadro teórico, a uma escola de pensamento. Isso deveria surgir mais tarde, em função do tempo e em função da análise crítica que éramos incentivados a fazer. E eu considero-me - e com muito orgulho, devo dizer - um herdeiro dessa atitude muito típica da FLUP dos anos oitenta e noventa sobretudo, porque, em linguística, como em qualquer ramo do conhecimento, há muitas vezes, e sobretudo hoje, por causa do imediatismo, por causa da necessidade de termos sempre uma resposta imediata e categórica para tudo, o modelo Google. Quando nós perguntamos qualquer coisa ao Google - por exemplo, “Em que ano foi a batalha de Hastings?” -, o Google nunca nos diz “Não sei”. O Google em dois segundos dá-nos um milhão de informações. Nós, os seres humanos, não somos assim e ainda bem que não somos assim. Nós temos que procurar, temos de duvidar e, antes de ter algum vestígio de certeza, temos de ter muitas perguntas e muitas dúvidas.

Há um bocado eu estava aqui a assumir-me como um chomskyano ao nível da conceção geral da linguagem e daquilo que é a linguagem. Ora, apesar disso, nessa tese de doutoramento, a minha ideia central é razoavelmente anti-chomskyana. Porque o que é que eu proponho? É que a experiência cultural dos sujeitos – mais concretamente, a alfabetização – pode interferir com aspetos fulcrais do conhecimento fonológico; e, se nós formos a adotar o modelo chomskyano puro e duro, isso não poderia ocorrer, porque o tal conhecimento da língua que dá título ao livro de 1986 é um conhecimento o mais independente possível da experiência cultural.

Portanto, aquilo que eu tentei fazer, numa atitude de independência do espírito, foi mostrar que, em certos aspetos, isso nem sempre é assim. De resto, há um texto antigo de Chomsky (de 1984, acho eu), que eu cito na tese, em que ele distingue a chamada “Gramática Nuclear” da chamada “Gramática Periférica”. O próprio Chomsky depois admite que nos aspetos centrais do conhecimento da língua essa influência cultural não se dá, mas, relativamente aos aspetos periféricos, ele dá um exemplo, que é relativamente trivial e discutível mas é o que ele dá, que é o léxico: o número de palavras que nós conhecemos difere grandemente de sujeito para sujeito em função por exemplo da escolaridade, da profissão, da cultura literária, etc. A principal ilação que eu tiro é esta: realmente, há aspetos do conhecimento da língua que podem sofrer a interferência ou podem ser, de certa forma, recondicionados pelo conhecimento e pela experiência cultural, como por exemplo, o conhecimento ortográfico. Do ponto de vista teórico, isto terá algum impacto, que eu nunca avaliei muito; do ponto de vista da observação de sujeitos em tarefas de processamento linguístico, isso tem efeitos muito importantes.

Há aqui um aspeto que eu gosto também muito de realçar, que é o seguinte: nós, na nossa tradição gramatical ocidental (portanto, na tradição que vem, sobretudo, de Saussure e dos primeiros estruturalistas), temos muito a ideia de que as representações escritas são objetos alienígenas dentro da linguística. Os verdadeiros objetos linguísticos são as representações sonoras das palavras, as realizações fonéticas, o que não deixa de ser verdade. Obviamente isso é verdade e há aqueles argumentos clássicos que mostram que antes de haver escrita já havia línguas orais e que todos os seres humanos falam pelo menos uma língua, mas só aqueles sujeitos que foram à escola é que a sabem escrever. Esses argumentos mostram realmente que existe uma espécie de primado do oral, mas a barreira muito categórica que é traçada, por exemplo, por Jespersen, um linguista estruturalista dinamarquês do início do século XX, dizendo num dos seus livros que a representação escrita não tem qualquer interesse para a linguística, é uma ideia que nós poderíamos com alguma vantagem refazer.

Se nós formos olhar às gramáticas orientais, a ideia é completamente diferente. Os gramáticos do chinês, quer os clássicos quer os contemporâneos, não fazem distinção entre o que é a palavra sonora e a palavra escrita. Aliás, a palavra para palavra e a palavra para símbolo escrito é a mesma: hanzi. Todas as gramáticas do chinês reservam capítulos longuíssimos à forma de decompor e analisar os símbolos escritos. Assim como nós decompomos morfológica ou semanticamente uma palavra, os símbolos escritos na gramática chinesa são também decompostos de forma muito analítica e sistemática: os “radicais pictográficos” que indicam “humano”, “líquido”, “lugar”, “telhado”, “vegetal”, “família”, etc., combinam-se todos dentro do mesmo caractere. Portanto, eu creio que se o trabalho que eu fiz para o meu doutoramento me amoleceu um bocadinho, foi de alguma forma em não ver estas duas realidades (representação fonológica interiorizada pelos falantes e conhecimento da forma gráfica) como realidades completamente separadas entre si. É certo que, ontologicamente, a escrita e a fala são realidades diferentes, mas nós, quando as estudamos, em algum momento, não estou a dizer que seja sempre e que seja obrigatório, temos que encontrar relações entre elas, relações essas, aliás, que estão estudadas em várias abordagens.

Quanto à motivação para a leitura dos jovens, penso que há outras áreas e outros estudos que exploram melhor isso porque na minha tese de doutoramento a conceção de leitura e de escrita que eu tinha era muito a leitura e a escrita de palavras e a relação entre grafemas e fonemas. A Professora Graça Pinto tem uma distinção entre “Leitura-Decifração” e “Leitura-Compreensão” e eu situo-me, naquela tese, na leitura-decifração e não na leitura-compreensão. Relativamente à pretensa motivação ou desmotivação dos jovens (e dos não jovens) para a leitura, eu não sou tão pessimista assim. Eu, se calhar, vou dizer uma coisa que é impressionista e posso estar profundamente errado: eu acho que nunca se leu tanto como agora. O que é que as pessoas hoje não leem ao contrário do que sucedia com pessoas da minha geração, da geração dos meus pais? Se calhar, não leem romances de 500 páginas numas férias de verão, embora continue a haver muita gente que o faz, e ainda bem (esse é um dos meus vícios, aliás). Mas as pessoas hoje estão imersas num mundo de escrita. Hoje em dia, pessoas da vossa geração, estudantes universitários, passam o dia a trocar mensagens no WhatsApp, a ir ver páginas da internet, a ir buscar informação. Nós temos agora um cérebro portátil: se queremos saber a capital de um país qualquer, vamos ao telemóvel, vamos ao Google, e isso tudo faz com que contactemos com a versão escrita da palavra, da linguagem. Eu acho que se lê muito, não se lê é as mesmas coisas da mesma forma como se lia há algum tempo. Há aquele célebre relatório, que saiu aqui há tempos, que dizia que, no ano de 2021 acho eu, a maior parte dos portugueses não leu um único romance. Eu não sei se esse inquérito, se fosse feito há 50 anos, no tempo da ditadura, por exemplo, em que as percentagens de analfabetismo em Portugal eram assustadoras, altíssimas, iria mostrar uma percentagem maior.

Nós não podemos esquecer que, hoje, não há adultos que não saibam ler em Portugal. Nós estamos a falar de um país onde os adultos têm taxas de alfabetização próximas dos 100% e há 50 anos os valores não chegavam a metade disso. E, depois, relativamente à leitura lúdica, há um aspeto que eu não posso deixar de referir. Eu sei que não é o que explica tudo, mas, como vocês sabem tão bem como eu, os preços dos livros são proibitivos. Se vocês forem a uma livraria qualquer e quiserem comprar um livro novo publicado em Portugal, não há livros que custem menos de 18, 20, 25 euros. E se eu quiser comprar 3 livros para as férias, são 75 ou 80 euros. Para muitas pessoas, isto não é dinheiro; para muitas pessoas (talvez a maior parte), isto é dinheiro. É claro que nós temos uma boa rede de bibliotecas municipais, onde as pessoas podem ler gratuitamente, mas aí já entramos noutro tipo de questões. Eu, nesta questão, não sou muito pessimista. Para já, não acho que as pessoas devam ler por obrigação.

Em segundo lugar, acho que temos que pensar que o analfabetismo desapareceu praticamente em Portugal e que isso é importante e louvável. E as pessoas que hoje sabem ler ou escrever podem não saber ler o Dostoiévski, podem não ter o hábito de ler “um Flaubert” durante o fim de semana, mas lêem outras coisas e a informação escrita digital, que vem nos computadores, nos telemóveis, é a principal fonte de informação. Antigamente, na minha infância, eu e muitos colegas de geração sabíamos muita coisa que se passava e que se tinha passado no mundo através de programas de televisão excelentes (que entretanto também acabaram). Era a televisão que nos dava essa informação. Hoje é a internet, e à internet acede- se através da leitura.

É claro que eu não estou aqui a dizer que a devamos abandonar, até porque como académico nem poderia dizer uma coisa dessas. Como linguista, os grandes textos da linguística em áreas como aquelas em que eu me movo são textos muito densos, que exigem um grande poder de concentração, um grande poder de abstração, um grande poder de relacionamento de conteúdos opacos. Isso talvez se tenha perdido um pouco, mas creio que ainda estamos a tempo de recuperar. Eu estava a falar agora da leitura não escolar ou não profissional. Obviamente, como licenciado em Literatura, o meu passatempo ainda continua a ser a leitura lúdica, para mim nada substitui a leitura de um romance bem escrito. Aí sou muito conservador: um romance com um enredo, com personagens, com tempo, com espaço. Tenho pena que não haja mais adesão a esse tipo de produtos, mas não dramatizo assim muito. Tenho a certeza de uma coisa (e esta é uma discussão em que eu me envolvo muitas vezes): há muita gente que tem um certo temor de que o livro em papel desapareça. Eu próprio, atualmente, leio toda ou quase toda a literatura técnica em formato digital, mas para a leitura literária não abdico do papel e acho que essa vai ser a salvação da publicação em papel - a literatura. Digam-me o que disserem – e agora posso parecer um bocadinho bota de elástico a dizer isto -, mas ler um romance, ou uma novela, ou um poema em papel e poder sublinhar, dobrar, mostrar, levar para a praia, levar para o parque, estar a ler na cama debaixo dos cobertores... Isso não se substitui. Isto é uma opinião e as opiniões valem o que valem, mas para mim o futuro da publicação em papel está na publicação literária.



O Senhor Professor tem-se dedicado ao estudo de variados temas da Fonologia do Português, debruçando-se sobretudo sobre os aspetos suprassegmentais da língua. Atualmente, que temas mais o têm interessado e, relativamente ao enquadramento teórico, continua a ser a Fonologia dos Elementos a sua corrente de eleição?


É. Eu não sei se tenho privilegiado tanto assim as estruturas suprassegmentais. Houve, é certo, uma certa fase da minha produção em que eu trabalhei muito sobre estruturas silábicas do português. Nos últimos anos, não tem sido tanto essa a minha preocupação. Ao nível das estruturas suprassegmentais, eu tenho trabalhado sobretudo questões relacionadas com acento e proeminência, quer acento principal, quer acento não-principal. É uma das áreas em que eu ainda tenho as tais dúvidas que fazem avançar o conhecimento, ainda tenho muitas dúvidas. Relativamente ao acento, estive a dirigir um projeto muito pequeno com financiamento da Fundação Gulbenkian que terminou no ano passado. Os resultados ainda não estão completamente publicados, mas sobretudo tentam defender - e em linha com alguns fonólogos, quase todos fora de Portugal - que o português é uma língua sensível ao peso silábico, isto é, a atribuição de proeminências, nomeadamente no acento principal de palavra, é fortemente dependente da estruturação silábica de certas sílabas dentro da palavra.

Portanto, tenho defendido que, ao contrário do que se lê na literatura mais canónica acerca do português, o português é uma língua sensível ao peso silábico, com a proposta adicional de que esse peso seja uma função não apenas da ramificação da rima. Nas perspetivas mais clássicas sobre este problema, as sílabas dividem-se em leves e pesadas, fundamentalmente por um critério: ramificação ou não ramificação da rima. As sílabas abertas seriam sempre leves e as sílabas fechadas seriam pesadas. Eu tenho proposto em algumas publicações (algumas delas ainda estão em fase de avaliação e outras à espera de publicação) que há outras variáveis, pelo menos em português e em línguas tipologicamente aparentadas com o português, que condicionam o peso silábico, por exemplo, a sonoridade da vogal, a abertura da vogal, a complexidade estrutural dos segmentos. Eu tenho defendido que existem consoantes intrinsecamente mais complexas do que outras, nomeadamente, por conterem, além das especificações tradicionais de modo e ponto de articulação, uma informação adicional de ordem autossegmental. Aqui tenho trabalhado muito na questão da palatalidade: as consoantes palatais são estruturalmente mais pesadas.

Portanto, tenho defendido que o peso não é uma propriedade só da sílaba, mas é uma propriedade que pode ser de alguns segmentos, nomeadamente das vogais abertas e das consoantes palatais. Nas sílabas em que nós encontramos vogais abertas e consoantes palatais, vamos encontrar um efeito de peso. O peso transita, digamos, do segmento para a sílaba e depois da sílaba para o acento. As minhas investigações mais recentes tentam conjugar informação segmental, autossegmental e suprassegmental e creio que tem sido essa a nota dominante dos meus últimos trabalhos. A Fonologia dos Elementos, que concebe todos os segmentos como uma combinação de primitivos fonológicos que são universais e que são muito escassos, continua a ser a minha teoria de eleição, sobretudo para a explicação das vogais. Como disse numa conferência que apresentei ao Encontro Anual da Associação Portuguesa de Linguística em 2020, e mantenho essa posição, tenho algumas dúvidas de que, para a explicação das consoantes, os elementos da Fonologia dos Elementos (sobretudo na perspetiva de Schane e Backley), sejam tão produtivos ou mesmo adequados (ao contrário do que defendo para as vogais).

Contudo, a minha opção pelas explicações elementaristas tem a ver sobretudo com dois aspetos: em primeiro lugar, as explicações elementaristas fornecem-nos descrições simultaneamente muito económicas e muito potentes do sistema vocálico da língua; e, depois, têm repercussões, por exemplo, neste aspeto da medição do peso segmental e, por arrastamento, do peso silábico. Portanto, há aqui uma triangulação entre questões suprassegmentais, questões segmentais e questões autossegmentais e, no meio, a assegurar o diálogo entre estes três vértices, encontramos a Fonologia dos Elementos que fornece, a meu ver e de acordo com os trabalhos que eu tenho publicado, explicações satisfatórias para estas três grandes questões da fonologia do Português e de outras línguas: como é que nós construímos segmentos? Como é que esses segmentos construídos com os elementos depois se vão comportar prosodicamente? Como é que algumas propriedades autossegmentais se projetam em propriedades segmentais e prosódicas? Estou a trabalhar bastante nestas questões e gostava de ter publicado mais ainda sobre isto, mas não tenho tido as melhores condições para publicar tanto quanto gostaria e quanto deveria. No entanto, tenho muitos resultados que espero poder partilhar muito em breve sobre estas questões.



A fonologia lida essencialmente com as representações mentais e abstratas dos sons da fala. A aceitação dessa premissa tem potenciado um crescente interesse pelo estudo da fonologia das línguas gestuais. Como fonólogo de línguas orais, como observa esse desenvolvimento e que perguntas gostaria de ver respondidas em relação à Fonologia das línguas gestuais?


Essa é uma pergunta para mim difícil por dois motivos. Primeiro, porque eu não sei muito sobre línguas gestuais. Segundo, porque continuo com uma dúvida que eu sei que já está mais do que esclarecida e documentada, e portanto esta dúvida até se calhar é mais uma “embirrância” (riso) minha do que uma dúvida, mas continuo não inteiramente convencido de que as línguas gestuais sejam passíveis de descrição com base nos mesmos princípios a partir dos quais descrevemos as línguas orais. Eu ainda não estudei devidamente o assunto. É uma das questões em que eu assumo a minha total ignorância, portanto, não sei o suficiente para ter uma opinião muito fundada sobre o assunto. Sei que este assunto é muito pacífico para muitos linguistas, também sei que não é nada pacífico para outros linguistas. Eu, como não tenho conhecimento suficiente, não me posiciono muito aí.

No entanto, a fonologia trata, como dizem na pergunta, de representações mentais. Essas representações mentais têm uma particularidade muito interessante: ao contrário das representações mentais da sintaxe, da semântica e de outras áreas, elas são diretamente relacionáveis com objetos fonéticos, físicos, acústicos, articulatórios. Portanto, quando dizemos que o traço [+/- vozeado] tem uma representação mental, há também algo na anatomia do ser humano, neste caso a vibração ou não vibração das cordas vocais, que materializa imediatamente essa entidade tão abstrata. Portanto, a fonologia tem uma relação, talvez indireta, mas óbvia, com objetos físicos, acústicos, fonéticos. Não vejo onde é que essa relação possa existir numa língua que por natureza é desprovida de som. As línguas gestuais caracterizam-se precisamente por não terem representação sonora. Têm outro tipo de representação física - visual, gestual, cinética. Creio que quando se fala de “fonologia das línguas gestuais”, estaremos a falar de fonologia num sentido de tipo metafórico. Estamos aqui a fazer uma espécie de equivalência simbólica, figurada, entre duas coisas que para mim são um bocadinho difíceis de relacionar, porque a fonologia, que é filha da Fonética, ocupa-se de sons, ainda que longinquamente e indiretamente. Se eu quiser metaforizar e dizer que a fonologia das línguas gestuais (que eu não sei exatamente o que é) é o estudo de alguns traços semelhantes aos traços que se combinam para dar origem aos fonemas, mas sem expressão sonora, então a fonologia serve para tudo.

Não sei sinceramente o que responder à pergunta, creio que tratar-se-á de uma metáfora. Vejo, apesar de tudo, uma relação mais direta entre a morfologia e a sintaxe das línguas orais e a morfologia e a sintaxe das línguas gestuais, de forma mais fácil do que no domínio da fonologia, por causa deste requisito “sonoro”, digamos. A fonologia, embora não trate de objetos sonoros, trata de objetos sonoros (risos). Isto é uma contradição, mas é o que é. Portanto, em última análise, aquilo que a fonologia estuda são as propriedades de objetos sonoros, propriedades gramaticais de objetos que têm realização sonora obrigatória. Ora, não havendo objetos sonoros nas línguas gestuais por definição, só posso entender a fonologia das línguas gestuais como uma comparação metafórica, figurada, entre outras coisas. Mas ressalvo, mais uma vez, que não sei o suficiente para dizer muito sobre o assunto e tenho certeza que há quilómetros de literatura publicada sobre o assunto que eu não conheço.



Tanto por via da sua formação quanto em textos autorais, o Senhor Professor demonstra um forte interesse pela língua latina. Nesse sentido, como é que avalia a importância do conhecimento e do estudo do latim no trabalho de um linguista especializado em língua portuguesa?


O conhecimento de estádios passados da língua e o conhecimento de outras línguas é sempre uma fonte de informação muito importante no trabalho linguístico, seja do português, seja de qualquer outra língua. Quando estamos a fazer trabalho sobre, por exemplo, o checo, será interessante comparar o checo com outras línguas da mesma família, e, se possível, com estádios anteriores do checo e com as línguas que deram origem a essas línguas… Portanto, a comparação do português com outras línguas românicas, com estádios passados do português e com línguas que antecederam o português, como o latim, é sempre uma fonte informativa importante. Ajuda-nos, às vezes, a perceber por que é que certas estruturas aparecem ou não aparecem. Mas tenho que dizer o seguinte: não há uma relação direta de causa e efeito, em que tudo o que existia ou não existia no latim determina tudo o que existe ou não existe no português.

O português é uma língua que deriva do latim, obviamente, mas que ao longo dos séculos também se foi construindo por pressão de mecanismos gramaticais internos e por contacto com outras línguas. E vou dizer agora uma coisa que vos pode parecer um bocado herética: na verdade, não é absolutamente essencial conhecer o passado de uma língua ou uma língua anterior a uma outra língua para podermos estudar essa língua. Se assim fosse, poderíamos dizer que só poderíamos estudar latim se conhecêssemos o indo-europeu e só poderíamos estudar o indo-europeu se conhecêssemos o proto-sapiens. Por acaso, no caso das línguas românicas, nós até sabemos qual é a língua que dá origem a todas elas e dessa língua temos muitos vestígios escritos, temos textos literários, temos gramáticas publicadas. Mas imaginemos línguas como as línguas faladas no continente americano antes da colonização europeia: as línguas ameríndias. Sobre essas línguas, nós não temos praticamente informação etimológica nenhuma, nenhuma indicação paleo-linguística e não é por isso que não há estudos linguísticos dessas línguas.

O conhecimento do passado da língua é um facilitador e o conhecimento das línguas que deram origem a outras línguas é bom e tem poder explicativo. E é um ato de conhecimento, e qualquer conhecimento, como eu já disse noutro passo da entrevista, é sempre importante. Conhecer é a coisa mais importante da vida. Portanto, o conhecimento histórico é um conhecimento que nos enriquece, mas queria dizer isto também com muita clareza: ele não é absolutamente essencial e indispensável para a descrição sincrónica de uma língua. Eu conheço muitos linguistas que são excelentes linguistas do português e que têm conhecimento muito escasso do latim. E há muitos aspetos da gramática do português que não são diretamente explicáveis pela gramática do latim. Dito isto, como sabem, eu sou um latinófilo, e já publiquei vários textos sobre isso. Assino todos os abaixo- assinados que apareçam à minha frente para reintroduzir o latim no ensino secundário!

Eu acho que o ensino do latim, assim como o ensino do grego, deveriam ter uma expressão muito maior no ensino secundário em Portugal, como já tiveram noutros tempos e como continuam a ter noutros países. Mas não é só pela questão linguística em si, é porque realmente, no caso dos países europeus e sobretudo dos países mediterrânicos, é em latim e em grego que foram escritos os principais textos literários, filosóficos, políticos, éticos, que formatam este nosso modo de estar no mundo e que explicam por que é que as culturas europeias – e, dentro das europeias, as sul-europeias de forma muito especial - são diferentes de sistemas culturais que nós encontramos noutras partes do mundo. Eu tenho sinceramente pena, desgosto e até uma certa revolta por hoje já não se ensinar latim em praticamente nenhuma escola. E julgo que é fundamental para uma cultura humanística robusta nós termos conhecimento do latim, sobretudo, e do grego também. Defendo que estas duas línguas tenham uma expressão maior no nosso ensino secundário e no nosso ensino superior. Mas também podemos ver alguns pontos positivos relativamente a esta questão.

Neste momento, na Faculdade de Letras do Porto, no curso de Línguas, Literaturas e Culturas existe um perfil de Português e Línguas Clássicas. Quando eu fui estudar para a Faculdade de Letras, no final do meu ensino secundário, ainda ponderei estudar Línguas e Literaturas Clássicas. E, realmente, a minha disciplina favorita da licenciatura, apesar de a Fonética também o ter sido de alguma forma, foram os dois anos de Latim que eram obrigatórios. E era latim a sério! A traduzir Cícero e Horácio, a dar fonética histórica do latim, morfologia histórica do latim... Portanto, o ensino do latim nessa altura era um ensino - para os alunos de Português/Francês, que era o meu caso - muito difícil e muito aprofundado e eu sempre gostei muito disso. Nessa altura, não optei por uma licenciatura em Línguas e Literaturas Clássicas porque isso ter-me-ia obrigado a ter que mudar de cidade e ter que ir viver para Coimbra ou Lisboa e eu, por razões pessoais e familiares, preferi não o fazer. Hoje em dia, alguém que queira obter uma licenciatura com uma componente mais forte de Estudos Clássicos não precisa de sair do Porto.

Por isso, para resumir e para voltar ao cerne da questão: o conhecimento de estádios passados da língua e das línguas que deram origem a outras línguas é sempre uma vantagem explicativa em linguística, mas não é completamente imprescindível. Há muitas línguas de cujo passado nós não conhecemos praticamente nada e isso não impede que se faça um estudo descritivo dessas línguas. As línguas africanas e as línguas ameríndias são casos muito sintomáticos disso. Além disso, nem tudo se explica na gramática do português, e aqui incluo a fonologia, pelo latim. Explica-se em parte pelo latim mas não exaustivamente pelo latim. Por exemplo, a redução vocálica - o facto de haver vogais diferentes em posição tónica e em posição átona e as vogais átonas serem em menor número e serem sujeitas a apagamento -, que é um fenómeno fundamental do português europeu, é um fenómeno que está disponível para um grande conjunto de línguas do mundo. Há uma distinção categórica famosa entre línguas silábicas e línguas acentuais. Nas línguas silábicas encontramos línguas que têm o latim como mãe e línguas que não descendem do latim e nas línguas acentuais idem. Portanto, não existe uma relação determinística, como às vezes certas pessoas parecem querer continuar a ver, entre o português e o latim. Faz lembrar aquela estrofe d’ Os Lusíadas em que Vénus dizia que o português, por pouca “corrupção”, era uma sobrevivência lírica do perfeito latim. É uma ideia bonita, como todas as ideias do Camões, mas é uma ideia que linguisticamente não tem grande validade.

Eu defendo o regresso em força do latim às nossas escolas, do conhecimento do latim. Fico muito irritado quando ouço as pessoas às vezes, por exemplo aqui na Universidade, a dizerem palavras como alumni e pronunciá-las como [a’lumnaj], a não distinguirem a posteriori de a priori... São coisas que me irritam, pronto, nós todos temos direito a algumas irritações. Mas o conhecimento do latim para mim tem mais um interesse cultural e intelectual geral do que um interesse específico para a linguística do português. Não estou a dizer que não tem interesse para a linguística do português: tem, mas não é absolutamente imprescindível, obrigatório.



Nesse sentido, o Senhor Professor acredita que, analogamente, o estudo de línguas estrangeiras, agora modernas, tem esse papel mais de facilitador que não é necessariamente essencial? Que um linguista monoglota não é uma contradição, mas uma possibilidade?


Sim, conheço dezenas de linguistas verdadeiramente geniais, que se dedicaram toda a vida ao estudo de uma língua e que não falam senão essa língua, normalmente a sua língua materna. Os linguistas americanos, por exemplo, que nunca analisaram outra língua que não fosse o inglês... Como sabem, o multilinguismo nos Estados Unidos não é assim uma coisa muito valorizada socialmente. É claro que se nota depois que, quando um linguista conhece outras línguas e consegue fazer comparações, tem algumas vias para chegar a certas conclusões mais facilitadas. Mas hoje em dia, também graças à linguística computacional, à linguística de corpus e à tipologia linguística, é possível fazer comparações seguras, cientificamente validadas, entre línguas, sem que seja necessário ter uma conversa fluente nas línguas de que nos servimos em trabalhos de investigação.

Essa ideia romântica do linguista como uma pessoa que fala fluentemente várias línguas, é uma ideia muito romanesca! Há linguistas que só conhecem uma ou duas línguas e só trabalham sobre essas línguas. Outros linguistas conseguem fazer comparações muito sólidas entre línguas sem as falarem, porque nós hoje temos instrumentos científicos que nos permitem fazer isso. Bases de dados como o WALS ou o PHOIBLE, muito usadas em tipologia fonológica, em tipologia sintática, etc., permitem-nos saber, por exemplo, quantos milhares de línguas existem com uma ordem SVO ou SOV, não havendo ninguém que fale ou conheça todos aqueles milhares de línguas. Portanto, o conhecimento linguístico pode ser um facilitador. Eu sou um adepto do multilinguismo, eu próprio falo várias línguas e gosto. Aprender línguas é um passatempo que eu tenho e isso tem alguma coisa a ver com o facto de eu ser linguista, mas podia perfeitamente ser linguista sendo um falante monolingue de uma língua. Portanto, sim, conhecer línguas facilita, mas não é estritamente necessário.



Para além de se dedicar à linguística, o Senhor Professor cultiva também um gosto especial pela música, tendo até procurado encetar alguns estudos sobre a relação entre aspetos fonológicos da língua e componentes musicais, como, por exemplo, o ritmo. Será que poderia contar-nos um pouco acerca desses trabalhos e do que o motiva a explorar essa relação entre música e linguagem?


Isso tem a ver com a parte inicial da entrevista, com a minha vocação frustrada para a música. Eu gosto muito de música, como consumidor. Acho que não há dia nenhum em que não ouça música. Gosto muito de ouvir música, quando estou a trabalhar por exemplo ou quando estou a fazer uma coisa muito chata, do género arrumar a cozinha. Preciso de ter alguma coisa que me compense, deve haver alguma coisa biológica que explique isso (risos). Isto tem a ver com coisas de infância e juventude. Eu estudei vários instrumentos, todos eles sempre com muito mau resultado (risos). Mas bom, há aquelas hipóteses de Ray Jackendoff e de Fred Lerdahl... O próprio Moris Halle, que é um grande fonólogo, tem alguns trabalhos sobre isso, ou seja, sobre o estabelecimento de paralelismos entre estruturas linguísticas e estruturas musicais, por exemplo, entre o que é uma frase musical e o que é um sintagma entoacional ou o que é o tempo forte e o tempo fraco de um compasso musical e o que é a sílaba proeminente de uma palavra.

Há muitos estudos que exploram estas relações e inclusivamente há teorias muito antigas, que já vêm de antes do século XIX, que imaginam uma origem comum da linguagem e da música: os primeiros hominídeos a terem alguma manifestação daquilo que seria uma protolíngua teriam começado, de acordo com essas “teorias”, por usar os sons cantados ou entoados para comunicarem entre si e, por isso, não haveria no início uma distinção muito clara entre música e linguagem. Pronto, esta é uma teoria como qualquer outra. Agora, há realmente relações entre estas duas manifestações até porque, ao contrário do que se passa com as línguas gestuais, volto agora também a outro ponto atrás, elas partem ambas do mesmo produto físico, que são as ondas sonoras, o som. Aquilo que motivou o meu trabalho sobre este tema, que é muito pouco e que eu também gostaria de continuar em breve, tem a ver com uma questão do português de que eu também já falei há pouco em resposta a uma das vossas perguntas.

A fonologia do português tem uma espécie de “Santo Graal”: alguma coisa que toda a gente sabe que existe, mas que não se sabe onde está. É o chamado acento secundário de palavra. Sabemos que, sobretudo em polissílabos mais extensos, existem proeminências intermédias entre a sílaba tónica, a mais proeminente de todas, e as verdadeiras sílabas átonas de uma dada palavra. Intuitivamente, todos nós sabemos que, em palavras como civilização ou meteorologia, palavras com mais de quatro sílabas, há ali umas sílabas que se destacam das outras e que a distribuição destas proeminências parece obedecer a critérios rítmicos. O problema é não haver correlatos fixos para este fenómeno. Nós sabemos quais são os correlatos do acento principal: normalmente, a sílaba tónica é a que tem maior duração, maior intensidade e maior elevação da frequência fundamental, portanto, maior F0. Fonologicamente, é a sílaba que no português europeu está a salvo dos fenómenos de redução vocálica. Para o acento secundário, não sabemos quase nada, não há indícios estáveis.

Há impressões auditivas, mas nós sabemos que a fonologia é uma ciência e, em ciência, as impressões e a intuição às vezes são um bom começo para a investigação, mas nunca podem ser a resposta final. Se formos ver descrições do acento secundário, no mesmo linguista, na mesma página, encontramos propostas completamente distintas, por isso é que eu dizia há pouco que este é o Santo Graal da fonologia do português. Nós sabemos que o acento secundário existe, mas não sabemos onde é que ele está nem como encontrá-lo. Uma hipótese que eu coloquei, porque já tem sido explorada noutras línguas, foi tentar ver alguma relação com os tempos fortes e fracos dos compassos de música popular cantada, portanto, música não erudita, na medida em que é música que estará mais próxima das intuições dos falantes. Há vários anos fiz um levantamento em vários cancioneiros, com destaque para o Cancioneiro de Rodney Gallop, que foi um etnomusicólogo que esteve em Portugal nos anos 30 e fez um levantamento muito representativo de canções populares portuguesas do norte ao sul do país, cobrindo todas as variedades e todas as regiões de Portugal.

Nós sabemos que os compassos musicais classicamente têm tempos fortes e fracos. Nos tempos fortes predominam as sílabas tónicas e eu queria ver se as sílabas não tónicas que se encontravam nos tempos fortes dos compassos teriam alguma coisa de especial. Há alguns algoritmos para a localização do acento secundário. O mais consensual de todos é o que diz que o acento secundário se encontra, nas palavras com quatro ou mais sílabas, de duas em duas sílabas da sílaba tónica para a margem esquerda da palavra. O que eu tentei ver foi se, aplicando esse algoritmo, as sílabas não tónicas dos tempos fortes dos compassos musicais no verso popular cantado correspondiam a este algoritmo. O resultado foi nulo (risos). Portanto, o Santo Graal continua escondido! Isto não deu grandes frutos, mas em 2021 fez-se um congresso muito interessante na Universidade de São Petersburgo, na Rússia, onde eu apresentei (on-line) este trabalho e ele até suscitou alguma curiosidade. O congresso juntava músicos, musicólogos, engenheiros acústicos, foneticistas, fonólogos, outros linguistas e antropólogos em torno destas questões. Este tema das relações entre estruturas musicais e estruturas linguísticas não é muito explorado em Portugal, mas, na minha intuição, acho que vai ser um tema de exploração futura muito em breve, mesmo em Portugal.

Nos países da Europa Central estas questões são muito estudadas. Roman Jackobson tem, já no início do século, vários textos sobre esta questão e é interessante reparar também que alguns foneticistas se interessam pelo assunto, como Antonio Quilis, um linguista espanhol que é autor de um tratado de Fonética Acústica e simultaneamente de um tratado de metrificação poética, ou Ilse Lehiste, uma foneticista estoniana que tem vários textos, já nos anos 70 e 80, sobre a relação entre ritmo musical, ritmo poético e ritmo linguístico. Portanto, o meu interesse tem sido um interesse platónico até agora, sem grande concretização, pois o único estudo que eu fiz foi esse sobre os indícios do dito acento secundário em português no metro popular, mas é um tema a que eu espero dar seguimento.



Sabemos que o Senhor Professor também se interessa por teatro, tendo inclusivamente escrito alguns textos que foram editados pelo Teatro Nacional de São João. Esse interesse relaciona- se com o trabalho que desenvolve em linguística ou é um assunto sobre o qual se ocupa separadamente?


Essa colaboração que eu tive com o Teatro Nacional São João (TNSJ), que foi das coisas mais apaixonantes que eu fiz na minha vida, foi a título de linguista. Eu gosto muito de teatro. Agora vou menos ao teatro por vários motivos e também porque hoje é mais difícil do que há vinte anos ver teatro no Porto. Quando eu tinha a vossa idade, ao domingo à tarde a gente comprava o Jornal de Notícias, abria-se uma página e havia dez espetáculos de teatro diferentes, em várias salas que entretanto foram fechando, por várias pequenas companhias que entretanto foram desaparecendo. Hoje em dia, para vermos teatro no Porto as escolhas são muito menores. Isso implica, entre outras coisas, que eu vá menos ao teatro, mas gosto muito, adoro teatro.

Quando saio de Portugal, procuro sempre ir a um espetáculo, mesmo que seja numa língua que eu não conheça! Gosto da fisicalidade, da ideia de que aquilo que nós estamos a ver, ao contrário do cinema, não vai ser exatamente igual no dia seguinte, porque o centímetro em que o ator está a pôr a perna não é o mesmo em que pôs no dia anterior, os atores esquecem-se do texto... Eu gosto muito de teatro e, se fosse menos tímido e fosse mais novo, se calhar também era uma ideia que eu consideraria (risos). A minha colaboração com o TNSJ surgiu num dia em que estava no Arrabidashopping e recebo um telefonema de um número que eu não conhecia de lado nenhum e que pertencia ao Ricardo Pais, na altura diretor do TNSJ. Por sugestão de um amigo comum, entretanto falecido, o Paulo Eduardo Carvalho, que era professor na nossa Faculdade, o Ricardo Pais disse-me que iam estrear uma peça do Molière (o Dom João) e precisavam de alguém da área da fonética e da fonologia para duas coisas. Primeiro, para fixar a pronúncia da peça, que é uma coisa que se faz em muitas companhias de teatro por esse mundo fora, se bem que em Portugal não tanto. Segundo, porque havia uns trechos no texto do Molière que eram escritos no que se chama o patois e queriam que eu sugerisse um equivalente na tradução para português.

Na altura, sugeri que se fosse buscar o caxineiro, o registo do português falado nas Caxinas, e fizemos ali um trabalho de que eu me orgulho muito e que recordo com muitas saudades. Trabalhar com atores é uma coisa libertadora, é muito bonito e o teatro feito a sério, com profissionalismo e exigência é uma coisa fabulosa. Acho que a experiência correu bem, tanto que depois fui convidado para colaborar com a fixação da pronúncia do português quinhentista noutras peças, novamente com o Ricardo Pais e depois com o Nuno Carinhas também. A minha função ali era apenas uma: fixar a pronúncia. Nós sabemos que a pronúncia das palavras se alterou muito ao longo dos séculos. Num texto de há quinhentos anos, vamos dizer p/e/ra ou p/ɛ/era? Vamos usar o /ʀ/ uvular que sabemos que só entrou em português no século XX, ou vamos usar o /r/ alveolar que nós sabemos que é a vibrante original da língua? Há questões que se colocam e que têm de ser resolvidas.

Portanto, primeiro havia essa fase da decisão e, depois, a fase de que eu mais gostava, que era fase do trabalho direto com os atores. Ensinar os atores a não “comer” sílabas, pronomes átonos... Falámos há um bocado da redução vocálica e um dos efeitos da redução vocálica em português é que, quando se apaga uma vogal, apaga-se uma sílaba. Ora, o verso do Gil Vicente é um verso em redondilha menor ou redondilha maior, portanto, com 5 ou 7 sílabas. “Comer” uma sílaba significa estragar (não tem outro termo) aquilo que era o objetivo estético da época, do autor e daquele texto, que consistia em ter 5 ou 7 sílabas em todos os versos. Combater esta tendência, que é a do português coloquial, de engolir todas as sílabas átonas e guardar espaço para todas as sílabas, fossem elas tónicas ou átonas, exigiu muitas horas de trabalho com os atores, que reagiam sempre muito bem. Os atores e os encenadores com quem eu trabalhei ali no TNSJ eram pessoas extremamente profissionais, curiosas, meticulosas, cuidadosas. Com esse trabalho retirei um enorme prazer pessoal e uma enorme aprendizagem sobre como se monta um espetáculo teatral num teatro como o TNSJ, que é um grande teatro nacional, com muitos meios envolvidos. Além desse prazer pessoal e dessa aprendizagem que tive, tentei sempre mostrar aliás, até escrevi sobre isso nos manuais de leitura do TNSJ - a utilidade que um linguista tem. Normalmente as pessoas olham para os linguistas com um certo desconhecimento.

As pessoas por vezes não sabem o que é a linguística e essa minha intervenção tentou mostrar também para que é que um linguista também pode servir. Bom, pode servir para, entre muitas outras coisas, colaborar num projeto artístico, colaborar num projeto cultural do qual beneficiam os espectadores, os atores, todos os profissionais envolvidos. Tenho muitas saudades desse tempo. Por razões diversas, essa colaboração depois acabou por cessar. A vida vai mudando, mas fiz muitos amigos naquele meio e foi das experiências mais gratificantes e que eu considero mais importantes da minha carreira.



O envelhecimento tem sido um tópico bastante investigado em linguística, tanto na FLUP como noutras instituições nacionais e internacionais. Na opinião do Senhor Professor, que contributo a fonologia poderá dar na procura por melhores soluções para o envelhecimento dos cidadãos e, simultaneamente, que pistas poderá dar essa fase do desenvolvimento humano para o conhecimento fonológico das línguas?


Eu não sou um especialista em envelhecimento. Há um bocado disse que não sou um especialista em línguas gestuais e por isso se calhar só disse disparates quando falei sobre isso. Sobre envelhecimento também sei muito pouco. Lembro-me de ter tido uma colaboração muito esporádica em algumas recolhas de linguagem junto de falantes mais idosos também com a Professora Graça Pinto há muitos anos, mas o meu envolvimento traduziu-se praticamente na ajuda da recolha. Eu sei que há, neste momento, muitos estudos sobre o envelhecimento. O envelhecimento está a constituir-se como uma área de estudos ao nível da Saúde, do Desporto, da Psicologia, da Educação, do Ensino de Línguas e, provavelmente, também ao nível da Linguística. Eu não conheço muito, não estou familiarizado com possíveis temas que tenham a ver com essa questão. Portanto, o que eu posso dizer sobre este assunto é muito pouco, mas, sabendo que o envelhecimento é hoje um tema muito explorado cientificamente, não tenho qualquer dúvida de que a linguística, e dentro da linguística a fonologia, alguma coisa terão a dizer sobre o assunto.

Eu pessoalmente não posso dizer muito porque sei pouco, não sei nada sobre o assunto e só gosto de falar do que sei. Lembrar-me-ia de uma coisa, mas se calhar isto até pode ser um bocadinho mal interpretado. Há pouco falámos da questão da variação. Eu admito, mas esta é uma mera probabilidade teórica que não tem nenhuma comprovação, que em estudos sobre a mudança linguística em português, por exemplo, nós possamos ver nos falantes mais idosos algumas evidências de marcas fonéticas e fonológicas do que seria o português falado há algumas décadas (padrão ou não padrão).

Nós sabemos que reconstituir o passado fonológico de uma língua é sempre um bocadinho arriscado... Sobre as estruturas sintáticas, nós temos documentação escrita que nos permite ver, por exemplo, onde é que em português medieval se colocavam os clíticos, mas sobre a pronúncia do português anterior à altura em que há gravações sonoras nós só temos hipóteses - do português ou de qualquer outra língua! Portanto, um trabalho interessante seria tentar encontrar, nos falantes mais idosos, marcas entretanto desaparecidas ou quase desaparecidas de estádios passados da língua. É claro que isto é dito numa perspetiva muito egoísta, é a perspetiva do linguista que está a ver no idoso uma fonte de dados linguísticos e, tanto quanto eu sei, os estudos sobre o envelhecimento hoje são estudos que procuram promover a qualidade de vida da população mais idosa. Obviamente não é nesse sentido que eu estava aqui a dar este exemplo.



Em Portugal, a linguística é ainda uma área relativamente desconhecida ou incompreendida e, frequentemente, suscetível a enganadoras caricaturas acerca do trabalho dos profissionais que a integram, sendo muitas vezes reduzida apenas à gramática normativa. Além disso, o curso de Ciências da Linguagem é também relativamente recente enquanto licenciatura na Universidade do Porto. Nesse sentido, de que forma poderá ser facilitada a familiarização e a aproximação dos cidadãos perante a linguística? E que relevância pode ter no dia-a-dia conhecer a linguística e, em particular, a fonologia?


Eu não sei responder bem à segunda parte da pergunta, mas concordo com a introdução. A linguística é muito desconhecida em Portugal. Noutros países também, mas em Portugal é de uma forma muito particular. Eu lembro-me de uma vez ter escrito uma recensão a um livro que saiu na revista Linguística, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dizendo que qualquer estudante no final do 12º ano em Portugal sabe o que é a física, a química, a filosofia ou a arqueologia, mas não sabe o que é a linguística.

A linguística é normalmente confundida ou com o poliglotismo - “um linguista é uma pessoa que fala muitas línguas” - ou com uma atitude muito policial sobre a língua: o linguista é a pessoa que sabe como se diz corretamente uma palavra, como se constrói corretamente uma frase, qual o significado exato desta ou daquela palavra no dicionário. Estou a falar da perceção social do que é um linguista. Vocês não calculam o número de telefonemas que eu recebo de pessoas conhecidas, e às vezes desconhecidas, que eu não conheço de ladíssimo nenhum, e que me contactam a perguntar “é mais correto dizer havia sido ou tinha sido?”, “O plural de molho é môlhos ou mólhos?”… O linguista é muitas vezes visto como uma espécie de dicionário com duas pernas e dois bracinhos ou um prontuário ambulante. Até certo ponto, até podem ter um pouco essa função, mas não é isso que os carateriza.

Como eu costumo dizer, os linguistas são os botânicos da língua, nós estudamos a língua como um botânico estuda uma espécie vegetal, sem fazer juízos de valor, podendo ter uma apreciação estética sobre as coisas, mas não deixando que isso interfira com uma descrição exaustiva, objetiva daquilo que é o seu objeto. Como é que isto se resolve? Essa é a pergunta à qual eu não sei responder. Eu acho que talvez possa ser através, mais uma vez, daquela palavra que eu valorizo muito que é o conhecimento. Valorizar o conhecimento produzido pelos linguistas. Em Portugal não temos tantas publicações e atividades de divulgação científica como existem noutros países, embora haja uma editora muito conhecida que tem, ou teve pelo menos durante muitos anos, uma coleção de livros sobre astronomia, matemática e química, escritos por profissionais dessas áreas, que davam a conhecer ao público em geral, numa linguagem rigorosa mas não inteiramente técnica, quais eram os principais objetivos, temas, questões, problemas das suas áreas. Provavelmente nós teríamos que fazer alguma coisa parecida com isso na linguística. Temos que mostrar aos leigos, aos não linguistas, o que é verdadeiramente um linguista. Temos de mostrar que não é um poliglota, não é um historiador da língua, embora possa ser estas coisas também.

Os historiadores da língua são, obviamente, linguistas, mas outra das perceções sociais do linguista é a que associa o linguista à pessoa que sabe de cor a etimologia de todas as palavras da língua (e a história da língua não se resume sequer à etimologia, como sabem). As pessoas às vezes associam a Linguística apenas ao estudo histórico diacrónico e isso é mais uma visão redutora. Por exemplo, a experiência que eu referi há pouco no TNSJ mostra que os linguistas são as pessoas que conhecem a língua, no seu passado, no seu presente, na sua evolução, nos seus usos sociais, nas suas características formais… Para o bem e para o mal, goste-se ou não se goste, as pessoas que melhor conhecem o “esqueleto” da língua, a estrutura da língua, a razão de certas marcas estarem presentes ou não estarem presentes ou serem admissíveis em certos contextos e não serem admissíveis noutros contextos, são os linguistas.

Assim como os engenheiros hidráulicos são quem sabe de barragens (risos) e os engenheiros eletrotécnicos sabem de redes elétricas! Eu acho que falta muito uma abertura nos dois lados. Abertura do meio, como por exemplo, esse convite que me foi feito para eu, como linguista, ir ajudar os atores do TNSJ e, se calhar, também alguma abertura dos próprios linguistas em saírem um bocadinho dos seus círculos habituais. Os linguistas, como quaisquer especialistas de qualquer área, trabalham muito para a sua comunidade. Publicam em revistas da especialidade, vão a congressos, dão as suas aulas, vão a conferências e talvez devêssemos alargar um bocadinho mais o escopo do nosso trabalho. O que é certo é que os linguistas em Portugal são poucos (ou comparativamente poucos) e os linguistas que em Portugal exercem a profissão são também, na sua maioria, professores universitários afundados em deveres e obrigações muito exigentes e diversificadas. Já não têm tempo para mais nada, eu sei! Portanto, há aqui uma série de circunstâncias que talvez dificultem um bocadinho, mas era importante dar ao público em geral a imagem do linguista e da linguística mais próxima daquilo que é o trabalho dentro desta área.



Não poderemos terminar esta entrevista sem falar de uma figura fundamental em todos os tópicos que temos vindo a abordar: os estudantes. Na perspetiva do Senhor Professor, e recuperando as memórias que guarda do tempo em que também foi estudante, que considerações lhe ocorrem acerca da relação que estes estabelecem com o meio académico envolvente? E, já agora, que mensagem deixa aos estudantes que irão ler esta entrevista?


Eu sou pouco de deixar mensagens, acho que isso é um bocadinho profético... Eu já quis ser músico, já quis ser latinista, ator de teatro mas profeta acho que nunca quis ser. Bom, não sei, isto pode parecer um lugar comum, mas às vezes os lugares comuns encerram grandes verdades. Os estudantes são o futuro. Assim como as línguas só sobrevivem com falantes, as áreas disciplinares, as ciências, também só sobreviverão se tiverem pessoas novas a dar-lhes continuidade. Os estudantes têm este papel fundamental que é serem uma espécie de garantia de que determinada área não irá desaparecer e não irá morrer... Estamos a falar agora da perspetiva da disciplina. Portanto, acho que os estudantes têm esta importância de início que é serem a garantia de que determinadas áreas têm continuidade. Depois, ao longo da minha carreira enquanto linguista, eu tenho aprendido muito com os estudantes.

Também pode parecer um lugar comum, mas eu posso até dar alguns exemplos. Eu lembro-me, por exemplo, de que eu fiquei a conhecer o WALS através de um aluno que um dia me disse “ó professor, descobri isto aqui!”. Portanto, eu tenho aprendido muito com os estudantes. Olhei sempre para os estudantes como meus iguais. Houve uma altura muito boa da vida do CLUP em que a FCT tinha umas bolsas que nos permitiam contratar estudantes de licenciatura para fazerem pequenos projetos de investigação e com isso ganhavam algum dinheiro e introduziam-se nos meandros da investigação. O Arquivo Dialetal da Universidade do Porto, que é talvez um dos produtos mais conhecidos do CLUP, consultado em todas as partes do mundo, que deu já origem a várias publicações também em vários países do mundo e que é uma fonte de corpus do português muito utilizada, foi construído por dois ou três estudantes a partir dessas bolsas nos anos 2008 e 2009. Esta revista elingUP, que é uma revista onde têm sido publicados trabalhos que depois são citados noutras publicações e que avivam esta área, é um produto de estudantes. Portanto, os estudantes são o tal sangue novo (que depois não tem a parte chata da vida académica, que são as reuniões, os júris, as cargas horárias letivas excessivas) que permite fazer avançar o conhecimento.

Eu tive sempre a sorte de ter uma excelente relação com os estudantes. Aliás, alguns dos meus melhores amigos hoje são ex-estudantes e acho que os mais jovens são fundamentais. Ainda por cima, em Portugal, nós sabemos da pressão social mediática e familiar para os jovens escolherem áreas atrás da ilusão de emprego seguro. Sabemos o que os alunos passam para terem 19,9 para poderem entrar no curso de Medicina... Portanto, estudantes que escolhem voluntariamente áreas como a Linguística ou áreas das Humanidades em geral são até, de certa forma, uns heróis! São pessoas que aceitam um grau de risco em troco do prazer intelectual e pessoal e também da ideia de que têm um papel importante na preservação do que é o nosso património cultural.

Os linguistas, juntamente com os historiadores, os sociólogos, os antropólogos e outras pessoas ligadas à área das Ciências Sociais e Humanas são, no fundo, os guardiães daquilo que é o património cultural da Humanidade: da nossa vila, da nossa cidade, do nosso país, do nosso continente, do nosso mundo. É assim que eu olho para os estudantes: como o capítulo que vem a seguir. Sempre fui muito próximo dos estudantes e nunca achei que os alunos estavam nas salas de aula meramente para aprender. Obviamente essa é a sua principal função e a minha principal função com os estudantes é ensinar-lhes, transmitir-lhes os conhecimentos. Contudo, devo transmitir-lhes também atitudes perante a forma de obter conhecimento, perante o modo de criticar conhecimento, de construir conhecimento e, como vos digo, aprendi muito também com estudantes. Todas as semanas, sem exagero nenhum, há sempre um aluno que vem com um texto que descobriu na internet, ou um recurso, ou uma base de dados, ou isto, ou aquilo, e isso é uma coisa que eu valorizo muito.


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Agradecemos à Revista elingUP pela gentileza e disponibilidade em sua parceria com o Linguisticamente Falando.

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